A Última Carta de António: Entre a Verdade e a Traição
— Não me digas que vais sair outra vez, António! — gritei-lhe da cozinha, enquanto ouvia o tilintar das chaves. O cheiro do café queimado misturava-se com o perfume dele, que parecia cada vez mais distante. Ele parou à porta, sem me olhar nos olhos.
— Tenho de ir ao escritório, Maria. O Dr. Sousa pediu-me para rever uns papéis — respondeu, seco, como quem recita uma desculpa já ensaiada.
Naquele instante, senti um aperto no peito. Não era a primeira vez que António saía tarde, nem seria a última. Mas havia algo diferente naquela noite de novembro. O vento batia nas janelas da nossa casa em Vila Nova de Gaia, e eu sentia-me tão só como nunca antes.
Depois que ele saiu, sentei-me à mesa da cozinha, rodeada pelo silêncio e pelo eco das palavras não ditas. O relógio marcava onze horas quando ouvi o portão fechar-se novamente. António não voltou naquela noite. Nem na seguinte.
Dois dias depois, recebi a notícia que nenhuma mulher espera: António tinha sofrido um acidente de carro na estrada para Aveiro. Morreu na hora, disseram-me. O mundo desabou aos meus pés. Os dias seguintes foram um borrão de lágrimas, telefonemas e rostos conhecidos que vinham prestar condolências. A minha mãe abraçou-me com força no funeral, mas eu sentia-me vazia por dentro.
Foi só semanas depois, quando finalmente consegui entrar no nosso quarto sem chorar, que encontrei a carta. Estava escondida no fundo da gaveta da mesa-de-cabeceira dele, por baixo das camisas que eu própria lhe passava a ferro todos os domingos.
“Maria, se algum dia leres isto, é porque já não estou contigo. Sei que te magoei mais do que alguma vez poderei explicar. Sei que te falhei como marido e como pai. Mas preciso que saibas a verdade sobre mim e sobre a nossa família.”
As mãos tremiam-me enquanto lia aquelas palavras. O António que eu conhecia era um homem reservado, mas nunca imaginei que guardasse segredos tão profundos.
A carta continuava: “Há anos que vivo com este peso. A Leonor… ela não é só tua amiga. Há muito tempo tivemos um caso. Foi um erro, um momento de fraqueza do qual me arrependo todos os dias. Mas há mais: o Diogo pode não ser meu filho biológico. Fiz um teste há dois anos, quando começaram as dúvidas. Nunca tive coragem de te contar.”
Senti o chão fugir-me dos pés. Leonor era a minha melhor amiga desde a infância; crescemos juntas na mesma rua, partilhámos segredos e sonhos. Como podia ela ter-se envolvido com o meu marido? E o Diogo… o meu filho! Como podia António duvidar disso? Como pôde esconder-me tudo isto?
Durante dias vivi num torpor. Evitava olhar para o Diogo — agora com 17 anos — com medo de ver nele traços de alguém que não fosse o António. E Leonor continuava a ligar-me todos os dias, preocupada comigo, sem saber que eu já sabia tudo.
Uma noite, não aguentei mais e liguei-lhe:
— Leonor, preciso de falar contigo. Agora.
Encontrámo-nos no café da esquina, onde costumávamos ir depois das aulas do liceu. Ela chegou apressada, com o cabelo preso num rabo-de-cavalo e os olhos vermelhos de tanto chorar por mim — ou talvez por ele?
— O que se passa, Maria? — perguntou ela, pousando a mão sobre a minha.
Olhei-a nos olhos e senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Sabes muito bem o que se passa! — atirei-lhe a carta para cima da mesa. Ela empalideceu ao ver a letra do António.
— Maria… eu… — começou ela, mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta.
— Como foste capaz? Depois de tudo o que passámos juntas! — gritei-lhe, sem me importar com os olhares curiosos à nossa volta.
Ela chorou baixinho e confessou tudo: “Foi só uma vez… Eu estava tão perdida naquela altura… Tu tinhas acabado de perder o teu pai e eu sentia-me sozinha… O António apareceu e… aconteceu. Juro-te que nunca mais se repetiu!”
Quis acreditar nela, mas as palavras do António ecoavam na minha cabeça: “Foi um erro do qual me arrependo todos os dias.” E quanto ao Diogo? Será que ele sabia? Será que sentia que algo não batia certo?
Voltei para casa com o coração despedaçado. O Diogo estava no quarto dele, a ouvir música alta como sempre fazia quando queria fugir ao mundo.
Bati à porta:
— Diogo, posso entrar?
Ele tirou os auscultadores e olhou para mim com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os do António — ou seriam da Leonor?
— Mãe? Está tudo bem?
Sentei-me ao lado dele na cama e abracei-o com força.
— Amo-te tanto, filho…
Ele ficou surpreendido com a minha súbita demonstração de afeto.
— Eu também te amo, mãe… Mas o que se passa?
Pensei em contar-lhe tudo naquele momento, mas as palavras ficaram-me presas na garganta. Como podia destruir-lhe a vida com uma verdade tão cruel? Decidi esperar.
Os dias passaram e a relação com Leonor ficou irremediavelmente marcada pelo silêncio e pela distância. Os nossos filhos continuavam amigos — ironia do destino — sem saberem dos pecados dos pais.
A minha mãe percebeu logo que algo estava errado.
— Maria, tu não estás bem… Queres falar comigo?
Desatei a chorar no colo dela como uma criança perdida.
— Mãe… o António traiu-me com a Leonor… E talvez o Diogo nem seja filho dele…
Ela ficou em silêncio durante uns segundos eternos e depois disse:
— Filha… às vezes as pessoas erram. Mas tu tens de decidir se queres viver presa ao passado ou seguir em frente pelo teu filho.
As palavras dela ecoaram em mim durante semanas. Comecei a reparar mais no Diogo: nos seus gestos, nas suas manias, no seu sorriso tímido igual ao do António quando queria pedir desculpa sem dizer nada.
Um dia sentei-me com ele à mesa da cozinha.
— Diogo… preciso de te contar uma coisa importante.
Ele olhou para mim assustado.
— O que foi?
Respirei fundo e contei-lhe tudo: sobre a carta do pai, sobre as dúvidas dele quanto à paternidade, sobre o erro entre ele e a Leonor.
O Diogo ficou em silêncio durante muito tempo. Depois levantou-se e abraçou-me.
— Mãe… tu és tudo para mim. O pai também era… Não quero saber de mais nada. Só quero continuar a ser teu filho.
Chorei como nunca tinha chorado antes. Senti um peso sair-me dos ombros.
Hoje olho para trás e vejo como tudo mudou desde aquela noite em que encontrei a carta do António. Perdoei-o? Não sei se alguma vez serei capaz de perdoar totalmente. Mas aprendi que o amor é feito de escolhas difíceis e de perdão — não só aos outros, mas também a nós próprios.
E vocês? Acham que é possível perdoar uma traição destas? Ou será que há segredos que nunca deviam ser revelados?