Entre Dois Mundos: Como Sobreviver aos Lamentos da Minha Mãe
— Outra vez atrasada, Mariana? — A voz da minha mãe ecoou pela casa, carregada de impaciência, enquanto eu tentava calçar os sapatos à pressa, já com o telemóvel a vibrar na mão. — Não sei como consegues viver assim, sempre a correr, sempre desorganizada.
Engoli em seco. O relógio marcava 8h12 e eu já devia estar no autocarro para o trabalho. Mas ali estava ela, parada à porta da cozinha, de braços cruzados, olhar crítico, como se cada segundo do meu atraso fosse uma afronta pessoal.
— Mãe, por favor, não agora. Tenho mesmo de ir — tentei apressar-me, mas ela não arredou pé.
— Não agora? Mariana, nunca é agora! Nunca tens tempo para mim. Desde que me reformei que parece que deixei de existir para ti. — A voz dela tremeu ligeiramente, e por um momento vi nos olhos dela algo mais do que irritação: vi solidão.
Senti uma pontada de culpa. Mas também raiva. Porque é que tudo tinha de ser sempre sobre ela? Porque é que eu tinha de ser a filha perfeita, a cuidadora, a confidente, quando mal conseguia respirar com o peso das minhas próprias responsabilidades?
No autocarro, com a cabeça encostada ao vidro embaciado pela chuva miudinha de Lisboa, as palavras dela martelavam-me os ouvidos. Lembrei-me dos tempos em que era criança e ela era o meu porto seguro. Agora, parecia que trocáramos de papéis. Ela dependia de mim para tudo: companhia, conversas, até para ir ao supermercado.
O meu telemóvel apitou com uma mensagem dela: “Não te esqueças do pão e do leite ao fim do dia. E vê se não te atrasas outra vez.”
Suspirei. No trabalho, mal consegui concentrar-me. A minha chefe, Dona Teresa, chamou-me à parte:
— Mariana, tens andado distraída. Está tudo bem em casa?
Sorri, mas o sorriso não chegou aos olhos.
— Está tudo… complicado. A minha mãe reformou-se e parece que perdeu o chão. E eu… sinto que estou a perder o meu.
Dona Teresa pousou uma mão no meu ombro.
— Sabes, quando o meu pai se reformou foi igual. Ficou perdido, sem saber o que fazer com tanto tempo livre. Mas não podes carregar tudo sozinha. Tens irmãos?
Abanei a cabeça.
— Sou filha única.
Ela suspirou.
— Então tens de aprender a pôr limites. Ou vais acabar por te perder a ti mesma.
As palavras dela ficaram comigo o resto do dia. Quando cheguei a casa, já passava das oito. A minha mãe estava sentada no sofá, televisão ligada num volume demasiado alto, mas os olhos fixos na porta à espera da minha chegada.
— Já viste as horas? — perguntou logo, sem sequer um “olá”.
— O trânsito estava impossível — menti.
Ela levantou-se devagar e veio ter comigo à cozinha.
— Trouxeste o pão?
— Trouxe — respondi, pousando o saco em cima da mesa.
O silêncio instalou-se entre nós enquanto ela arrumava as compras com gestos lentos e pesados.
— Mariana… — começou ela, hesitante. — Eu sei que às vezes sou chata. Mas sinto-me tão sozinha aqui nesta casa…
Sentei-me à mesa e olhei para ela. Pela primeira vez em muito tempo vi-a como alguém frágil, não apenas como a mãe exigente que me tirava do sério.
— Mãe… eu também me sinto sozinha às vezes. E cansada. Não é fácil para mim estar sempre disponível.
Ela sentou-se à minha frente e ficou a olhar para as mãos.
— Quando o teu pai morreu pensei que nunca mais ia conseguir sorrir. Depois tu cresceste tão depressa… E agora sinto que já não tenho lugar na tua vida.
As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto enrugado. O meu coração apertou-se.
— Tens lugar sim — disse-lhe baixinho. — Mas preciso que percebas que também tenho uma vida. Preciso do meu espaço.
Ela assentiu devagar.
— Eu sei… Só queria sentir-me útil outra vez.
Naquela noite, depois de jantar, sentei-me com ela no sofá e sugeri:
— Porque não vais ao centro de dia do bairro? Ou fazes voluntariado? Conheces pessoas novas…
Ela olhou-me com desconfiança.
— Achas que alguém quer saber de uma velha como eu?
Sorri-lhe com ternura.
— Claro que sim. Tens tanto para dar ainda.
Nos dias seguintes tentei ser mais paciente. Mas nem sempre consegui. Houve manhãs em que voltei a perder a cabeça:
— Mãe, por favor! Não podes estar sempre em cima de mim! Preciso respirar!
Ela fechava-se no quarto e só saía horas depois, olhos vermelhos e silêncio pesado na casa.
Comecei a sentir-me prisioneira da culpa. Queria ser boa filha, mas também queria ser livre. Queria cuidar dela, mas também cuidar de mim.
Um sábado à tarde decidi sair sozinha para caminhar junto ao Tejo. Sentei-me num banco e chorei baixinho, sem vergonha das lágrimas misturadas com o vento frio do inverno lisboeta.
Uma senhora idosa sentou-se ao meu lado e puxou conversa:
— Está tudo bem, menina?
Contei-lhe um pouco da minha história e ela sorriu com compreensão.
— Sabe… os filhos acham sempre que têm de carregar os pais às costas quando envelhecemos. Mas às vezes só precisamos de sentir que ainda somos importantes para alguém. Não precisa fazer tudo sozinha.
Aquelas palavras ficaram comigo como um bálsamo inesperado.
Quando cheguei a casa nesse dia encontrei a minha mãe na cozinha a fazer bolos — coisa rara desde há anos. O cheiro doce encheu-me de nostalgia dos tempos em que era criança e ela fazia bolinhos para mim e para o meu pai ao domingo à tarde.
— Resolvi experimentar aquela receita antiga — disse ela sem me olhar diretamente nos olhos. — Se quiseres provar…
Sentei-me à mesa e partilhámos um silêncio confortável enquanto comíamos bolo quente com chá.
Nesse momento percebi: talvez nunca encontrasse um equilíbrio perfeito entre ser filha e ser mulher independente. Talvez o segredo fosse aceitar as imperfeições da nossa relação e aprender a pedir ajuda quando precisasse — tanto eu como ela.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o amor transformar-se em obrigação? Quantas vezes esquecemos que também temos direito ao nosso próprio espaço? Será possível cuidar sem nos perdermos pelo caminho?