À Porta Fechada: Quando a Mãe Deixa de Ser Bem-vinda
— Mãe, por favor, não insistas. Não podes ficar cá hoje. — A voz do meu filho, Miguel, ecoa fria no corredor do prédio. O cheiro a detergente barato mistura-se com o perfume forte da Inês, que se esconde atrás dele, braços cruzados, olhar duro. Sinto o chão fugir-me dos pés.
Nunca pensei ouvir estas palavras do meu próprio filho. Fui mãe solteira, criei-o sozinha depois que o pai nos deixou para ir viver com outra mulher em Braga. Trabalhei noites inteiras como empregada de limpeza no hospital de Santa Maria para que nada lhe faltasse. Quantas vezes adormeci sentada na cadeira da cozinha, esperando que ele chegasse da escola? Quantas vezes engoli lágrimas para lhe sorrir ao pequeno-almoço?
Agora estou aqui, com uma mala pequena na mão — a mala onde guardava as roupas dele quando era bebé — e ele diz-me que não posso entrar. O prédio é frio, as paredes pintadas de bege já descascam. O vizinho do terceiro andar espreita pela porta entreaberta.
— Miguel, eu só queria falar contigo. Preciso de ti — digo, a voz a tremer. Sinto o rosto arder de vergonha e raiva. Inês desvia o olhar para o telemóvel.
— Não é um bom momento, mãe. Temos os nossos problemas. — Ele fala baixo, mas firme. Lembro-me do menino que me pedia colo quando tinha pesadelos. Agora olha-me como se eu fosse uma estranha.
— Problemas? Eu só queria ajudar! — Tento sorrir, mas a minha boca não obedece.
Inês suspira alto. — Dona Teresa, já falámos sobre isto. O Miguel precisa de espaço. Nós precisamos de espaço.
Ouvindo aquilo, sinto-me pequena, inútil. Recordo os dias em que Inês entrou na nossa vida: bonita, cheia de sonhos, mas sempre distante comigo. Nunca aceitei bem o modo como ela afastava Miguel da família. No Natal passado recusou-se a vir à minha casa porque “não gosta de bacalhau”. No aniversário dele nem me deixou organizar a festa.
Miguel fecha a porta atrás de si e aproxima-se. — Mãe, por favor… Vai para casa. Eu ligo-te amanhã.
— Amanhã? — Repito como um eco vazio. — E se amanhã nunca chegar?
Ele não responde. Volta para dentro e fecha a porta devagar. Fico ali parada, ouvindo o som do trinco a rodar. Sinto-me como uma criança perdida no recreio da escola.
Desço as escadas devagar, cada degrau mais pesado que o anterior. Lá fora chove miudinho. O autocarro para Algés passa sem eu me mexer. Sento-me num banco molhado e olho para a mala: dentro dela estão as fotografias do Miguel em pequeno, o casaco azul que lhe tricotei quando fez cinco anos, e uma carta que nunca tive coragem de lhe entregar.
A carta começa assim: “Meu querido filho, se algum dia te sentires sozinho, lembra-te que a tua mãe está sempre aqui.” Agora pergunto-me se ainda faz sentido guardá-la.
Os dias seguintes são um nevoeiro espesso. O telefone não toca. Tento ocupar-me com as plantas na varanda, mas até elas parecem ressentidas com o meu toque trémulo. A vizinha do lado bate-me à porta com um bolo de laranja — diz que me viu triste no corredor.
— Teresa, está tudo bem? — pergunta ela.
— Está… Está tudo como tem de estar — minto.
À noite, deito-me cedo mas não durmo. Oiço os passos dos vizinhos no andar de cima e imagino Miguel e Inês a discutirem baixinho sobre mim. Será que ele sente a minha falta? Ou será que sou mesmo um peso morto na vida dele?
Uma semana depois recebo uma mensagem curta: “Mãe, desculpa pelo outro dia. Estou ocupado com o trabalho. Falamos depois.” Não há um “amo-te”, nem sequer um “beijinho”.
No supermercado encontro a irmã da Inês, a Marta. Ela olha-me com pena.
— Teresa… ouvi dizer que as coisas estão complicadas lá em casa.
— Não sei o que se passa — respondo, tentando manter a dignidade.
Ela hesita antes de falar: — A Inês acha que o Miguel precisa de cortar o cordão umbilical… Que tu te metes demasiado na vida deles.
Sinto uma raiva surda crescer dentro de mim. Sempre tentei ajudar! Quando ficaram sem dinheiro para pagar a renda fui eu quem emprestou o que tinha guardado para as férias em Vila Nova de Milfontes. Quando a Inês perdeu o emprego fui eu quem cozinhou e limpou a casa durante semanas.
Volto para casa mais pesada ainda. Oiço as mães no parque falarem dos filhos e netos com orgulho e penso: onde errei eu? Será que amar demais pode afastar quem mais queremos?
O tempo passa devagar. No aniversário do Miguel envio-lhe uma mensagem: “Parabéns, meu amor.” Ele responde apenas: “Obrigado.” Não há convite para jantar, nem sequer uma chamada.
No Natal compro presentes para os dois e deixo-os à porta do prédio deles porque ninguém atende ao intercomunicador. Volto para casa sozinha e janto uma sopa fria diante da televisão ligada num volume baixo.
Uma noite recebo uma chamada inesperada: é o Miguel.
— Mãe… podes vir cá amanhã? Precisamos falar.
O coração dispara-me no peito. Passo a noite em claro a imaginar mil cenários: será que vão anunciar um neto? Ou será mais uma despedida?
No dia seguinte visto o melhor casaco e apanho o autocarro cedo demais. Chego ao prédio deles antes das oito da manhã e espero no café da esquina até ser hora decente de tocar à campainha.
Quando finalmente subo, Inês abre-me a porta com um sorriso forçado.
— Olá Teresa… entra.
Miguel está sentado à mesa da cozinha, olhos vermelhos de cansaço.
— Mãe… desculpa por tudo isto — começa ele. — Mas precisamos mesmo do nosso espaço agora. A Inês está grávida e queremos fazer as coisas à nossa maneira.
Fico sem palavras por um momento. Grávida? Um neto! O coração enche-se-me de alegria e medo ao mesmo tempo.
— Parabéns… — murmuro, tentando sorrir apesar das lágrimas nos olhos.
Inês olha-me séria: — Queremos ser nós a tomar conta do bebé desde o início. Sem interferências.
Miguel segura-me na mão: — Não é por mal, mãe… Só queremos tentar sozinhos desta vez.
Sinto-me dividida entre orgulho e rejeição. Sempre sonhei em ser avó presente, ensinar canções antigas ao neto, fazer-lhe bolos ao domingo… Mas agora percebo que não sou bem-vinda nesse futuro.
Levanto-me devagar e abraço o meu filho pela última vez nesse dia.
— Se precisares de mim… sabes onde estou — digo-lhe ao ouvido.
Saio dali com passos pesados mas cabeça erguida. Lá fora o sol brilha tímido entre nuvens cinzentas.
Agora passo os dias entre silêncios e memórias: revejo álbuns antigos, escrevo cartas que nunca envio, falo com fotografias como se pudessem responder-me. Pergunto-me onde foi que falhei; se amar demais é um erro ou apenas parte da condição de ser mãe.
E vocês? Já sentiram que deram tudo por alguém e mesmo assim ficaram de fora da sua vida? Será possível amar sem sufocar? Ou será que há momentos em que temos mesmo de aprender a deixar ir?