Entre Dois Mundos: O Peso das Escolhas e o Valor da Família

— Não quero mais viver contigo, mãe. Quero ir para casa do pai. — As palavras do Tiago ecoaram pela sala como um trovão inesperado. O meu coração parou por um segundo, e depois disparou numa corrida desenfreada, como se quisesse fugir do meu peito.

Olhei para ele, sentado no sofá, as mãos pequenas fechadas em punhos, os olhos brilhantes de raiva e mágoa. Tinha só doze anos, mas naquele momento parecia-me um estranho. O silêncio entre nós era tão denso que quase podia tocá-lo.

— Tiago, por favor… — tentei começar, mas a voz falhou-me. Senti as lágrimas a ameaçarem cair, mas engoli-as. Não podia mostrar fraqueza. Não agora.

Ele desviou o olhar, fitando o chão. — O pai deixa-me fazer o que eu quero. Tu só sabes gritar comigo.

As palavras dele eram facas afiadas. Senti cada uma a cortar-me por dentro. Tentei lembrar-me do momento em que tudo começou a desmoronar-se. Talvez tenha sido no dia em que o Pedro saiu de casa, há três anos. Ou talvez tenha sido muito antes disso, quando deixámos de nos ouvir um ao outro.

O divórcio foi um processo lento e doloroso. No início, tentei manter as rotinas para o Tiago, fingir que tudo estava bem. Mas as discussões com o Pedro tornaram-se cada vez mais frequentes e intensas. Discutíamos por tudo: dinheiro, horários, educação do Tiago. E ele, no meio de tudo isto, foi ficando mais calado, mais distante.

— Não é justo, Tiago — disse eu, tentando controlar a voz. — Eu faço tudo por ti. Trabalho horas extra para te dar uma vida melhor. Só quero que sejas feliz.

Ele levantou-se de repente, os olhos cheios de lágrimas que se recusava a deixar cair. — Eu não sou feliz aqui! — gritou, antes de correr para o quarto e bater com a porta.

Fiquei ali parada, sozinha na sala, com o eco da porta a ressoar na minha cabeça. Sentei-me no sofá e abracei uma almofada, como se isso pudesse preencher o vazio que sentia por dentro.

Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do quarto, a pensar em tudo o que tinha feito de errado. Lembrei-me das vezes em que gritei com ele por causa das notas da escola, das discussões à mesa do jantar porque não queria comer sopa, dos castigos por ter chegado tarde a casa dos amigos. Sempre achei que estava a fazer o melhor para ele. Mas agora percebia que talvez só estivesse a afastá-lo cada vez mais.

No dia seguinte, liguei ao Pedro. A voz dele soou fria do outro lado da linha.

— O Tiago quer ir viver contigo — disse-lhe sem rodeios.

Houve um silêncio breve antes de ele responder:

— Achas mesmo que é o melhor?

— Não sei — admiti. — Mas ele está infeliz aqui. E eu já não sei o que fazer.

O Pedro suspirou. — Mariana, tu sempre foste uma boa mãe. Só estás cansada.

— Talvez — respondi, sentindo as lágrimas finalmente caírem. — Mas não quero obrigá-lo a ficar comigo se ele não quer.

Marcámos um encontro para conversar os três. No sábado seguinte, sentámo-nos numa esplanada perto do rio Tejo. O Tiago estava calado, os olhos postos na água.

— Filho — começou o Pedro —, sabes que podes sempre contar connosco os dois.

O Tiago encolheu os ombros. — Só quero experimentar viver contigo um tempo.

Senti um nó na garganta. Tive vontade de gritar que era injusto, que eu é que estava sempre ali para ele, nas noites de febre, nos trabalhos da escola, nos jogos de futebol ao sábado de manhã. Mas calei-me. Talvez fosse isso que ele precisava: silêncio e compreensão.

No dia em que o Tiago fez as malas para ir para casa do pai, ajudei-o a dobrar as roupas favoritas e pus-lhe um lanche na mochila, como fazia quando era pequeno. Ele evitava olhar-me nos olhos.

— Vais sentir a minha falta? — perguntei-lhe baixinho.

Ele hesitou antes de responder:

— Não sei…

Quando saiu pela porta com o Pedro, fiquei sozinha em casa pela primeira vez em doze anos. O silêncio era ensurdecedor. Passei horas sentada no quarto dele, a cheirar as camisolas esquecidas na gaveta e a folhear os álbuns de fotografias antigas: o primeiro sorriso sem dentes, as férias no Algarve, o Natal em casa dos meus pais.

Os dias seguintes foram um tormento. Ia trabalhar mecanicamente e voltava para casa vazia. Os colegas perguntavam-me se estava tudo bem e eu sorria sem vontade. À noite chorava baixinho na almofada para não acordar os vizinhos.

A minha mãe ligava todos os dias:

— Mariana, tens de reagir! O Tiago precisa de ti!

Mas eu sentia-me vazia por dentro. Comecei a evitar os amigos e até deixei de ir ao ginásio onde costumava descarregar as frustrações.

Uma noite recebi uma mensagem do Tiago:

“Preciso de um livro para a escola.”

O coração deu um salto. Respondi imediatamente:

“Queres vir cá buscar?”

Ele respondeu só com um “sim”.

Quando chegou cá a casa, parecia mais crescido. Olhou à volta como se fosse um estranho naquele espaço onde cresceu.

— Queres jantar? Fiz esparguete à bolonhesa…

Ele encolheu os ombros mas sentou-se à mesa comigo. Durante o jantar falámos pouco. No fim levantou-se para ir embora e hesitou à porta:

— Posso vir cá jantar outra vez?

Sorri-lhe com lágrimas nos olhos:

— Podes vir sempre que quiseres.

A partir desse dia começou a vir mais vezes: às vezes só para buscar um casaco esquecido ou para jantar comigo ao domingo à noite. Aos poucos fomos recuperando alguma da cumplicidade perdida: ríamos juntos dos vídeos parvos no telemóvel dele ou discutíamos sobre futebol como antigamente.

Um dia ligou-me à noite:

— Mãe… posso voltar para casa?

O coração quase me saltou do peito.

— Claro que sim! — respondi sem hesitar.

Quando voltou para casa abraçou-me com força e sussurrou:

— Desculpa…

Abracei-o ainda mais forte:

— Não tens nada que pedir desculpa…

Hoje olho para trás e percebo que às vezes temos de perder para aprender a valorizar aquilo que temos. O amor entre mãe e filho é feito de erros e perdões, de silêncios e reencontros.

Será que alguma vez aprendemos verdadeiramente a ser pais? Ou estamos todos apenas a tentar fazer o melhor possível com aquilo que temos? Gostava de saber se alguém já sentiu este vazio…