O Aroma do Pão Quente e o Peso das Palavras Caladas

— Mariana, outra vez pão de ontem? — A voz do Rui ecoou pela cozinha, carregada de uma impaciência que já me era familiar. O cheiro do pão aquecido misturava-se com o amargo das palavras não ditas. Eu estava de costas, a tentar esconder as lágrimas que ameaçavam cair.

— Foi o que consegui trazer, Rui. O supermercado já estava a fechar quando saí do trabalho — respondi, esforçando-me para manter a voz firme, mas sentindo o nó na garganta apertar.

Ele suspirou alto, largando os talheres sobre a mesa com um estrondo. — Sempre desculpas. Nunca há tempo para nada nesta casa. Nem para mim.

Aquela frase ficou a pairar no ar, mais pesada do que qualquer silêncio. Olhei para as minhas mãos, vermelhas do calor do forno e do detergente barato. Quantas vezes já tinha ouvido aquela reclamação? Quantas vezes me calei para evitar discussões? Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim, misturada com culpa e cansaço.

— Não é só para ti que não há tempo — murmurei, quase sem querer. Mas ele ouviu.

— O que disseste?

Virei-me devagar, enfrentando finalmente o olhar dele. Os olhos castanhos de Rui estavam duros, quase desconhecidos. — Disse que eu também não tenho tempo para mim. Nem sei quem sou fora disto tudo.

Ele levantou-se abruptamente, a cadeira arrastando-se pelo chão de azulejo. — Lá estás tu com essas conversas de psicologia barata. Se não estás feliz, diz de uma vez!

O coração batia-me descompassado. Senti-me pequena, esmagada entre as paredes daquela cozinha minúscula do nosso apartamento em Almada. O pão quente na bancada parecia agora um símbolo cruel de tudo o que eu tentava manter fresco e vivo: o casamento, a casa, a esperança.

— Não é isso… — comecei, mas ele já tinha saído da cozinha, batendo com a porta do quarto.

Fiquei ali parada, ouvindo o silêncio pesado da casa. O relógio da parede marcava 21h17. Lá fora, ouvia-se o som distante dos elétricos e o riso abafado dos vizinhos. Sentei-me à mesa, sozinha, e trinquei um pedaço de pão duro. O sabor era insosso, como a minha vida naquele momento.

Lembrei-me de quando conheci o Rui, há dez anos atrás, numa festa de São João em Lisboa. Ele era divertido, espontâneo, fazia-me rir até às lágrimas. Eu era uma miúda cheia de sonhos: queria ser professora de literatura, viajar pelo mundo, escrever um livro. Agora era assistente administrativa numa empresa de seguros e mal tinha tempo para ler uma página antes de adormecer.

O telemóvel vibrou: uma mensagem da minha mãe. “Está tudo bem? Não te esqueças do aniversário do pai amanhã.” Suspirei. Mais uma obrigação, mais um papel a desempenhar.

No dia seguinte, acordei cedo e preparei-me para ir trabalhar. Rui saiu sem se despedir. No autocarro para Lisboa, olhei pela janela e vi o Tejo brilhando ao longe. Senti uma vontade súbita de descer na próxima paragem e desaparecer por umas horas. Mas não podia. Havia contas para pagar, reuniões para agendar, aniversários para lembrar.

No escritório, a rotina engoliu-me: telefonemas apressados, papéis acumulados na secretária, colegas que falavam alto demais sobre novelas e promoções que nunca chegavam. À hora de almoço, sentei-me sozinha no refeitório e abri o livro que trazia na mala há semanas: “Os Maias” de Eça de Queirós. Não consegui passar da primeira página.

À noite fui a casa dos meus pais com um bolo comprado à pressa no Pingo Doce. O meu pai sorriu ao ver-me, mas percebi nos olhos dele uma preocupação antiga. A minha mãe puxou-me para a cozinha enquanto os homens viam futebol na sala.

— Mariana, estás tão magra… Está tudo bem contigo e com o Rui?

Desviei o olhar. — Está tudo igual, mãe.

Ela pousou a mão no meu braço. — Sabes que podes sempre voltar para casa se precisares.

Sorri-lhe com ternura e tristeza ao mesmo tempo. — Não é assim tão simples.

Quando voltei para casa já passava das onze. Rui estava sentado no sofá às escuras, a ver televisão sem som.

— Não me esperaste para jantar? — perguntei.

Ele encolheu os ombros. — Não sabia se vinhas.

Sentei-me ao lado dele, mas havia um abismo entre nós. Tentei tocar-lhe na mão, mas ele afastou-se.

— Rui… — comecei.

— Mariana, eu também estou cansado disto tudo — disse ele de repente. — Sinto que estamos só a cumprir um papel. Já nem sei se gostamos um do outro ou se só temos medo de ficar sozinhos.

As palavras dele caíram como pedras no meu peito. Fiquei sem resposta.

Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do quarto escuro, ouvindo a respiração pesada dele ao meu lado. Pensei em tudo o que tínhamos construído juntos: as viagens baratas ao Algarve, os jantares improvisados com amigos, as discussões por causa das contas ou da sogra demasiado presente. Pensei nos sonhos que fui deixando pelo caminho para manter a paz ou porque “não era altura”.

No sábado seguinte acordei cedo e fui à feira comprar pão fresco. O padeiro sorriu-me como sempre e perguntou: — Então menina Mariana, tudo bem?

Quase lhe disse que não estava nada bem. Mas sorri e agradeci o pão quente nas mãos geladas.

Ao chegar a casa encontrei Rui na varanda a fumar — coisa rara nele — e percebi que algo tinha mudado nos seus olhos.

— Precisamos mesmo de falar — disse ele antes sequer de eu pousar os sacos.

Sentámo-nos à mesa da cozinha onde tudo tinha começado dias antes.

— Mariana… eu acho que precisamos de espaço — começou ele com voz trémula. — Não quero magoar-te mais nem continuar assim por hábito ou medo.

Senti as lágrimas finalmente caírem sem controlo. — E se tentássemos outra vez? Procurar ajuda? Lembrar-nos do que nos uniu?

Ele abanou a cabeça devagarinho. — Já tentámos tantas vezes… Talvez seja altura de cada um descobrir quem é sozinho.

O silêncio instalou-se entre nós como uma sentença inevitável.

Nos dias seguintes vivi num torpor estranho: arrumei gavetas antigas cheias de cartas e fotografias; liguei à minha melhor amiga Inês depois de meses sem falar; comecei a escrever num caderno velho frases soltas sobre tudo o que sentia e temia perder.

A casa parecia maior sem Rui ali todos os dias. O cheiro do pão fresco tornou-se um ritual só meu aos domingos de manhã; aprendi a gostar do silêncio e até das minhas próprias dúvidas.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes sacrificamos quem somos por medo de dececionar os outros? E será possível recomeçar depois de tantos anos calados?

Talvez nunca encontre todas as respostas — mas agora sei que mereço procurá-las.