Entre o Amor e a Injustiça: O Dia em que a Família se Desfez
— Não pode ser, mãe! — O grito do Rui ecoou pela sala, cortando o silêncio pesado que se instalara depois da leitura do testamento. Eu estava sentada ao lado dele, as mãos geladas, o coração aos pulos. A minha sogra, Dona Amélia, olhava para nós com aquele ar frio, quase distante, que sempre me fez sentir uma intrusa nesta família.
O apartamento de três quartos em Benfica, onde todos crescemos juntos, onde passámos tantos Natais e aniversários, tinha sido deixado ao irmão mais novo do Rui, o Pedro. O Rui, meu marido há dez anos, ficou apenas com umas economias e um conjunto de louças antigas. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Como podia ela fazer isto? Como podia dividir a família assim?
— Rui, não compliques — disse o Pedro, tentando soar calmo, mas eu via-lhe o brilho de triunfo nos olhos. — A mãe sabe o que faz.
— Sabes lá tu! — atirou o Rui, levantando-se de rompante. — Sempre foste o preferido! Sempre! E agora isto…
Eu queria dizer alguma coisa, mas as palavras não me saíam. Olhei para a minha filha, a Mariana, sentada no canto da sala, os olhos arregalados de medo. Tinha apenas oito anos e já percebia que algo estava muito errado.
A Dona Amélia suspirou, ajeitando a echarpe de lã sobre os ombros magros.
— Não é uma questão de preferências. O Pedro precisa mais. O Rui tem a casa dele, tem trabalho estável…
— E eu? — interrompi, finalmente encontrando voz. — E nós? Não merecíamos pelo menos consideração? Depois de tudo o que fizemos por si?
Ela olhou-me como se eu fosse uma criança birrenta.
— Tu és só nora. Isto é entre filhos.
Aquelas palavras doeram mais do que qualquer bofetada. Só nora. Depois de tantos anos a cuidar dela quando esteve doente, a levar-lhe as compras, a ouvir-lhe as lamúrias quando ninguém mais tinha paciência… Eu era só nora.
O resto da família ficou calado. A cunhada Susana trocava mensagens no telemóvel, fingindo não ouvir nada. Os netos brincavam no corredor, alheios à tempestade que se abatia sobre nós.
Naquela noite, em casa, o Rui não conseguia parar de andar de um lado para o outro.
— Não percebo… Porquê? O que é que eu fiz de mal? — repetia ele, os olhos vermelhos de raiva e tristeza.
Abracei-o com força.
— Não fizeste nada de mal. A tua mãe é que nunca te soube valorizar.
Ele afastou-se.
— Não digas isso dela… É minha mãe.
— E eu sou tua mulher! — gritei sem querer. — Estou farta de ser tratada como se não fizesse parte desta família!
O silêncio caiu entre nós como uma pedra. Mariana apareceu à porta do quarto.
— Mãe… pai… estão zangados?
Ajoelhei-me ao pé dela.
— Não, querida. Só estamos tristes.
Mas era mentira. Eu estava furiosa. E sentia-me traída por todos: pela sogra, pelo Pedro, até pelo Rui, que nunca teve coragem de enfrentar a mãe.
Os dias seguintes foram um tormento. O Pedro começou logo a falar em vender o apartamento e comprar um carro novo. A Dona Amélia ligava todos os dias ao Rui para saber se já tinha ultrapassado “a birra”. Eu evitava ir às reuniões de família; sentia-me observada, julgada por todos.
Uma tarde, ao sair do supermercado com as compras para a Dona Amélia (sim, ainda assim…), encontrei-a à porta do prédio.
— Ainda me fazes as compras? — perguntou ela com um sorriso irónico.
— Faço porque sou educada — respondi seca. — Mas não espere mais nada de mim depois disto.
Ela encolheu os ombros.
— A vida é assim. Vais perceber quando fores velha.
Fui para casa a chorar. Lembrei-me de todas as vezes em que pus os meus sonhos em pausa para ajudar aquela família: quando deixei o emprego para cuidar da Mariana porque não tínhamos dinheiro para creche; quando passei noites no hospital com a Dona Amélia; quando organizei festas e jantares para unir todos à volta da mesa… Para quê? Para ser “só nora”?
O Rui começou a afastar-se. Passava mais tempo fora de casa, dizia que precisava de pensar. Uma noite chegou tarde e cheirava a álcool.
— Não aguento mais isto — disse ele, desabando no sofá. — Sinto-me um falhado.
— Não és tu que falhaste — tentei consolá-lo. — Foi ela que te falhou.
Mas ele não queria ouvir. Começou a beber cada vez mais. A Mariana perguntava-me porque é que o pai estava sempre triste. Eu não sabia responder.
Um dia recebi uma mensagem da Susana: “Devias ter vergonha de pôr o Rui contra a mãe dele.” Fiquei furiosa. Liguei-lhe imediatamente.
— Tu não sabes nada do que se passa aqui em casa! — gritei-lhe ao telefone. — Se fosses tu a ser tratada assim, também te revoltavas!
Ela riu-se.
— Sempre foste dramática…
Desliguei-lhe na cara. Senti-me sozinha como nunca antes.
As semanas passaram e o clima em casa tornou-se insuportável. O Rui perdeu o emprego; diziam no trabalho que andava distraído e agressivo. As contas começaram a acumular-se na gaveta da cozinha. Tive de voltar a trabalhar como empregada numa pastelaria do bairro para pagar as despesas básicas.
Uma noite, depois de adormecer a Mariana, sentei-me na varanda e chorei baixinho para ninguém ouvir. Senti-me derrotada. Tudo por causa daquela decisão injusta da Dona Amélia.
No Natal desse ano, fomos convidados para jantar na casa nova do Pedro — sim, ele já tinha vendido o apartamento e comprado um T3 moderno em Alvalade. Fui contra vontade; não queria mostrar fraqueza diante deles.
Durante o jantar, Pedro brindou:
— À família! Que nada nos separe!
Olhei para o Rui; ele estava pálido e calado. Mariana brincava com os primos como se nada fosse.
No fim da noite, Dona Amélia aproximou-se de mim na cozinha.
— Espero que já tenhas ultrapassado essa história toda…
Olhei-a nos olhos pela primeira vez sem medo.
— Nunca vou ultrapassar ser tratada como invisível nesta família. Mas vou aprender a viver com isso.
Ela virou costas sem dizer palavra.
Hoje escrevo esta história porque sei que há muitas pessoas como eu: mulheres que dão tudo por uma família que nunca as aceita verdadeiramente. O Rui ainda luta contra os fantasmas daquela noite; eu tento reconstruir os pedaços da nossa vida todos os dias por causa da Mariana.
Pergunto-me muitas vezes: será que vale mesmo a pena sacrificar tanto por quem nunca nos reconhece? Quantas famílias se destroem por causa de uma herança? E vocês… já passaram por algo assim?