Entre o Passado e o Presente: Um Natal de Revelações
— Não me venhas agora com modernices, Mariana! — A voz da minha mãe ecoa pela cozinha, misturando-se com o cheiro intenso do bacalhau a cozer. — Sempre foi assim, sempre será assim. O Natal faz-se em minha casa, com as receitas da tua avó.
A minha mão treme ligeiramente enquanto corto as batatas. Tento não olhar para ela, mas sinto o seu olhar cravado nas minhas costas. O meu pai está sentado à mesa, em silêncio, folheando o jornal como se nada se passasse. Os meus filhos, Inês e Tomás, brincam na sala, alheios à tensão que paira no ar.
Respiro fundo. — Mãe, não estou a dizer para deixarmos de fazer bacalhau ou rabanadas. Só queria experimentar algo diferente este ano. Talvez um prato vegetariano para a Inês, sabes que ela já não come carne nem peixe…
Ela atira o pano para cima da bancada. — Isso são modas! No meu tempo ninguém era esquisito. Comia-se o que havia e agradecia-se! — A sua voz treme de raiva e mágoa. — Não percebes que estás a desrespeitar a tradição?
O meu pai levanta os olhos do jornal. — Deixa lá a miúda, Maria. Os tempos mudam.
Ela vira-se para ele, olhos faiscantes. — Mudam, mudam… E depois ninguém se lembra das raízes! — E sai da cozinha, batendo a porta.
Fico ali parada, sentindo-me uma traidora. O meu pai pousa o jornal e olha-me com ternura. — Não te preocupes, filha. A tua mãe é assim porque tem medo de perder aquilo que sempre conheceu.
Sento-me ao lado dele. — E eu? Não posso ter medo de nunca conseguir ser eu própria nesta família?
Ele sorri, cansado. — Talvez seja isso que falta: coragem para sermos nós próprios sem magoar os outros.
O relógio marca quase seis da tarde quando o meu irmão Rui chega com a mulher e os filhos. Trazem sacos cheios de presentes e uma energia caótica que enche a casa de vozes e risos. A minha mãe reaparece, já recomposta, e começa a distribuir tarefas como um general em campo de batalha.
— Mariana, vai pôr a mesa! Rui, ajuda-me com o polvo! — grita ela.
Obedeço em silêncio, mas por dentro sinto-me cada vez mais sufocada. Penso na Inês, que olha para o prato vazio enquanto todos se servem do bacalhau. Penso no Tomás, que me pergunta baixinho porque é que a avó está sempre zangada comigo.
Durante o jantar, tento puxar conversa sobre viagens, livros, até sobre política — qualquer coisa para desviar o foco da comida. Mas tudo volta sempre ao mesmo: as receitas da avó, os natais antigos, as saudades do tempo em que éramos todos pequenos e felizes.
De repente, a Inês levanta-se da mesa. — Desculpem, mas não consigo comer isto. — Os olhos dela brilham de lágrimas contidas.
A minha mãe suspira alto. — Lá está ela com as esquisitices…
Levanto-me também. — Mãe, chega! Não vês que estás a magoar a tua neta? Porque é que custa tanto aceitar que ela é diferente?
O silêncio cai como uma pedra sobre a mesa. O Rui olha para mim com surpresa; a minha cunhada baixa os olhos; os miúdos param de rir.
A minha mãe levanta-se devagar. — Não é fácil para mim… Eu só queria que tudo fosse como antes.
Aproximo-me dela e seguro-lhe as mãos. — Mas não é mais. E nunca vai voltar a ser. Podemos tentar encontrar um novo equilíbrio? Juntas?
Ela hesita, mas vejo nos seus olhos uma tristeza antiga, um medo de perder tudo aquilo por que lutou.
— Se calhar… podemos fazer um prato novo para a Inês no próximo ano — diz ela finalmente.
A Inês sorri timidamente e abraça-a. O Tomás corre para junto delas e eu sinto uma onda de alívio misturada com culpa e esperança.
O resto da noite desenrola-se num clima estranho mas mais leve. Contamos histórias antigas e rimos das nossas próprias teimosias. No fim, sentamo-nos todos à volta da árvore de Natal e trocamos presentes feitos à mão: um cachecol tricotado pela avó para a Inês; um desenho do Tomás para o avô; um livro antigo do meu pai para mim.
Quando todos já dormem, fico sozinha na sala iluminada pelas luzes da árvore. Penso em tudo o que foi dito e no muito que ficou por dizer.
Será possível honrar as nossas raízes sem sufocar quem somos? Ou será que só encontramos verdadeira harmonia quando aceitamos mudar juntos?