Depois do Adeus: Como Reencontrei o Meu Lugar no Mundo
— Não podes ficar aqui, Maria. O pai já não está, e esta casa é nossa por direito. — A voz fria da Ana ecoava pelo corredor, enquanto eu segurava uma caixa com as poucas roupas que consegui arrumar em minutos. O António, o mais velho, nem sequer me olhava nos olhos. Limitava-se a segurar a porta aberta, impaciente, como se cada segundo que eu demorava fosse um insulto à memória do pai deles.
Nunca pensei que o fim da vida do Manuel fosse também o fim da minha. Estivemos juntos vinte e dois anos. Fui madrasta, companheira, enfermeira nos últimos meses de doença. E agora, ali estava eu, expulsa da casa onde cada canto tinha o cheiro da nossa história.
— Por favor, só preciso de mais uns dias… — supliquei, sentindo a voz embargar.
— Não há mais nada para falar — cortou o António. — O advogado já explicou tudo. A casa é nossa.
Saí com as pernas a tremer, sentindo o peso do olhar dos vizinhos atrás das cortinas. O céu estava cinzento, como se chorasse comigo. Sentei-me no banco do jardim em frente ao prédio, abraçada à caixa. Não sabia para onde ir. Não tinha irmãos, os meus pais tinham partido há anos. Os poucos amigos que restavam eram mais conhecidos de café do que verdadeiros confidentes.
Naquela noite dormi num quarto alugado na pensão da Dona Emília, uma mulher de voz grossa e coração mole que me ofereceu chá quente e um cobertor extra.
— Não se preocupe, menina Maria. Amanhã é outro dia — disse-me ela, pousando a mão no meu ombro.
Mas eu não queria outro dia. Queria voltar atrás no tempo, ouvir o Manuel ressonar baixinho ao meu lado, sentir o cheiro do café pela manhã, discutir sobre novelas ao jantar. Queria a minha vida de volta.
Os dias seguintes foram um nevoeiro de burocracias e humilhações. O advogado dos miúdos — nunca lhes consegui chamar filhos — ligou-me para acertar a entrega das chaves e dos poucos pertences que me deixaram levar. Entre as roupas e as fotografias antigas, faltavam as cartas que o Manuel me escrevia nos aniversários. Perguntei por elas; disseram-me que não sabiam de nada.
Senti-me invisível, descartável. Como se vinte e dois anos não tivessem significado nada para ninguém além de mim.
Comecei a procurar trabalho. Aos 56 anos, com o curso de secretariado desatualizado e pouca experiência recente fora de casa, ninguém queria saber de mim. Fui rejeitada em entrevistas para limpezas, supermercados, até para cuidar de idosos — ironia cruel.
Foi numa manhã chuvosa que conheci o Rui. Estava sentada num banco do jardim municipal, a tentar ler um anúncio de emprego no jornal molhado, quando ele se aproximou.
— Precisa de ajuda? — perguntou ele, com um sorriso tímido.
Olhei para ele desconfiada. Em Lisboa, ninguém oferece ajuda sem querer algo em troca.
— Só estou à procura de trabalho — respondi secamente.
Ele sentou-se ao meu lado sem pedir licença.
— A minha mãe está a precisar de alguém para lhe fazer companhia durante o dia. Ela não gosta de lares nem de estranhos em casa… mas talvez goste de si.
Fiquei sem palavras. Aceitei o contacto dele sem grandes esperanças. Mas naquela noite liguei-lhe. No dia seguinte fui conhecer a Dona Teresa: uma senhora elegante, com olhos vivos e língua afiada.
— Não preciso que me mudem as fraldas nem que me façam sopa passada! Quero companhia para conversar e alguém que saiba jogar à sueca — avisou logo.
Ri-me pela primeira vez em semanas.
Comecei a ir todos os dias à casa da Dona Teresa. Falávamos horas sobre livros antigos, novelas brasileiras e as saudades do mar da Figueira da Foz. Ela ensinou-me a jogar à sueca; eu ensinei-lhe a fazer arroz doce como o Manuel gostava.
Aos poucos fui recuperando alguma alegria. A Dona Emília deixou de me cobrar a renda quando percebeu que eu estava a trabalhar pouco mais do que por comida e companhia.
— O dinheiro não é tudo na vida — dizia ela, empurrando-me fatias generosas de bolo caseiro.
Mas as noites continuavam difíceis. Sonhava com o Manuel quase todas as madrugadas; acordava com o peito apertado e lágrimas nos olhos.
Um dia, ao sair da casa da Dona Teresa, cruzei-me com a Ana na rua. Ela desviou o olhar mas eu fui ter com ela.
— Porque é que fizeram isto comigo? — perguntei-lhe, sem rodeios.
Ela hesitou antes de responder:
— O pai nunca nos perdoou por termos ido viver com a mãe depois do divórcio… Achámos que tu tinhas roubado o nosso lugar na vida dele.
Fiquei sem palavras. Só então percebi que o rancor deles não era só comigo; era com o passado todo.
— Nunca quis tirar-vos nada — disse-lhe baixinho. — Só queria ser família.
Ela encolheu os ombros e afastou-se apressada.
Naquela noite escrevi uma carta ao Manuel. Não tinha morada para enviar; deixei-a junto à fotografia dele na minha mesa-de-cabeceira improvisada na pensão:
“Querido Manuel,
Hoje percebi que nunca fui tua mulher aos olhos dos teus filhos. Talvez tenha falhado contigo ou com eles… Mas amei-te como soube e pude. Sinto falta do teu abraço nas noites frias e das tuas piadas parvas ao pequeno-almoço. Espero que saibas que tentei ser feliz contigo até ao fim.”
Os meses passaram devagar mas firmes. A Dona Teresa foi piorando; quando partiu, deixou-me uma carta e um pequeno envelope com algum dinheiro:
“Maria,
Obrigada por me devolveres os dias bons quando já só esperava noites longas. Compra algo bonito para ti e não deixes ninguém roubar-te outra vez o sorriso.”
Com esse dinheiro consegui alugar um pequeno quarto só para mim — sem cheiro a mofo nem barulho de hóspedes bêbados no corredor.
Aos poucos fui reconstruindo uma rotina: passeios pelo bairro, cafés com a Dona Emília, tardes de cartas no centro de dia local onde comecei a fazer voluntariado.
Um dia recebi uma mensagem inesperada do António:
“Desculpa pelo que fizemos. A Ana está doente e fala muito em ti. Gostávamos que viesses visitá-la.”
O meu coração bateu descompassado. Fui vê-la ao hospital de Santa Maria; estava magra e pálida mas sorriu ao ver-me entrar.
— Desculpa… — murmurou ela, agarrando-me a mão com força surpreendente.
Chorámos juntas nesse quarto branco e frio. Perdoei-a ali mesmo; não por ela ou pelo António, mas por mim — porque carregar rancor pesa mais do que carregar saudade.
Hoje vivo sozinha num T0 modesto em Benfica. Não tenho muito: algumas fotografias antigas, cartas guardadas numa caixa de sapatos e um vaso de manjerico na janela. Mas tenho paz.
Às vezes pergunto-me se teria feito algo diferente se soubesse como tudo ia acabar… Talvez não tivesse amado tanto; talvez tivesse protegido mais o meu coração. Mas será possível viver verdadeiramente sem arriscar perder tudo?
E vocês? Já tiveram de recomeçar quando tudo parecia perdido? O que vos deu força para continuar?