Vergonha aos Trinta: Porque é que a minha mãe não me deixa amar?
— Marta, não vais sair assim vestida, pois não? — A voz da minha mãe ecoa do corredor, carregada de julgamento, enquanto eu tento fechar o fecho do vestido azul que comprei em saldos, só para impressionar o Paulo. Sinto o coração apertar-se, como se cada palavra dela fosse um prego a cravar-se na minha pele.
— Mãe, tenho trinta anos. Posso escolher a minha roupa — respondo, mas a minha voz sai mais baixa do que queria. Ela entra no quarto sem bater, como sempre.
— Trinta anos e ainda vives aqui. Achas que isso é normal? — Ela cruza os braços, olhando-me de cima a baixo. — E vais sair com esse rapaz outra vez? Não percebes que ele não é para ti?
O Paulo. O homem que me faz rir até às lágrimas, que me ouve quando desabo sobre o trabalho no call center, que me traz flores do mercado da Ribeira só porque sim. Mas para a minha mãe, ele nunca será suficiente. Não tem “bom emprego”, não tem “boas famílias”. Não é o que ela sonhou para mim.
— Mãe, eu amo o Paulo. Porque é tão difícil para ti aceitar isso? — Tento manter a calma, mas sinto as lágrimas a ameaçarem-me.
Ela suspira alto, como se carregasse o peso do mundo nos ombros.
— Porque quero o melhor para ti! Não quero ver-te a sofrer como eu sofri com o teu pai. Achas que não sei o que é amar alguém que não te pode dar segurança?
Fico em silêncio. O meu pai saiu de casa quando eu tinha dez anos. Lembro-me das noites em que a minha mãe chorava baixinho na cozinha, pensando que eu dormia. Lembro-me da vergonha na escola, dos olhares dos vizinhos. Talvez seja por isso que ela me quer presa aqui, protegida de tudo.
Mas eu já não sou aquela menina assustada. Ou será que sou?
O Paulo espera-me lá fora, no carro velho dele, sempre com um sorriso tímido e um olhar de quem percebe mais do que diz. Quando entro no carro, ele segura-me na mão.
— Está tudo bem? — pergunta.
— Não — respondo, sincera. — Mas contigo fica melhor.
Ele beija-me a mão e seguimos para o miradouro de Santa Catarina, onde costumamos ver Lisboa acender-se à noite. Falo-lhe da discussão com a minha mãe, do medo de nunca conseguir sair daquela casa.
— Marta, tu não és responsável pela felicidade dela — diz-me ele, olhando-me nos olhos. — Tens direito à tua vida.
Mas será mesmo assim tão simples?
No dia seguinte, ao pequeno-almoço, o silêncio pesa entre mim e a minha mãe. O meu pai liga do Algarve, onde vive com a nova mulher. Fala pouco comigo. Sinto-me dividida entre dois mundos: o da minha mãe, feito de sacrifício e medo; e o do meu pai, feito de fuga e esquecimento.
A minha irmã mais nova, Inês, já saiu de casa há dois anos. Vive com uma amiga em Setúbal e raramente liga. A minha mãe diz sempre: “A Inês nunca foi de família”. Mas eu sei que ela só queria respirar.
À noite, depois do jantar, a minha mãe senta-se ao meu lado no sofá.
— Marta, tu sabes que eu só quero proteger-te — diz ela, com a voz mais suave. — O mundo lá fora é cruel. E esse Paulo… ele não tem nada para te oferecer.
Sinto raiva e culpa ao mesmo tempo.
— Mãe, eu não quero uma vida perfeita. Quero uma vida minha.
Ela olha-me como se eu tivesse acabado de trair tudo aquilo em que ela acredita.
Os dias passam e cada vez sinto mais o peso daquela casa sobre mim. O Paulo começa a falar em irmos viver juntos num T1 pequeno em Almada. Eu hesito. Não por falta de vontade, mas por medo de magoar a minha mãe.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o Paulo — desta vez porque ele não tem “ambição” suficiente — fecho-me no quarto e choro até adormecer. Sonho com uma casa só minha: paredes brancas, silêncio e liberdade.
No trabalho, os colegas falam dos seus casamentos, filhos e casas próprias. Eu minto sobre onde vivo. Digo que estou “temporariamente” com os meus pais por causa da pandemia. Sinto vergonha de ser aquela adulta que nunca saiu do ninho.
O Paulo percebe o meu afastamento.
— Marta, se não fores capaz de escolher por ti… vais passar a vida inteira à espera da aprovação dela? — pergunta-me numa noite fria junto ao Tejo.
Não sei responder-lhe. Sinto-me presa entre dois amores: o da minha mãe e o dele.
Um sábado à tarde, decido enfrentar tudo de uma vez. Chamo a minha mãe à sala.
— Mãe, preciso falar contigo.
Ela olha-me desconfiada.
— Vou sair de casa. Vou viver com o Paulo.
O silêncio dura uma eternidade. Ela levanta-se devagar e começa a arrumar as almofadas do sofá compulsivamente.
— Vais arrepender-te — diz ela finalmente, sem me olhar nos olhos.
Sinto um nó na garganta mas mantenho-me firme.
— Prefiro arrepender-me por tentar do que passar a vida inteira arrependida por não ter vivido.
Ela sai da sala sem dizer mais nada. Ouço-a chorar no quarto dela durante horas. Sinto-me a pior filha do mundo.
No dia seguinte faço as malas em silêncio. A minha mãe não aparece para se despedir. O Paulo ajuda-me a levar as caixas para o carro. Quando fecho a porta daquela casa pela última vez, sinto um misto de alívio e dor.
A primeira noite no novo apartamento é estranha. O Paulo tenta animar-me com pizza e vinho barato, mas eu só consigo pensar na minha mãe sozinha naquela casa enorme.
Passam-se semanas sem falarmos. A culpa pesa todos os dias. Mas começo finalmente a sentir-me dona da minha vida: decoro a casa à minha maneira, faço planos com o Paulo sem pedir permissão a ninguém.
Um dia recebo uma mensagem da minha mãe: “Espero que estejas bem.” Nada mais. Mas é um começo.
Às vezes pergunto-me se algum dia ela vai aceitar verdadeiramente as minhas escolhas ou se vou passar a vida inteira dividida entre ser boa filha e ser feliz à minha maneira.
Será possível libertarmo-nos do passado sem magoar quem amamos? Ou será inevitável escolher entre nós próprios e aqueles que nos deram tudo?