Depois de Dezassete Anos: O Reencontro com a Minha Irmã
— Não venhas com lágrimas agora, Leonor. — A voz da minha irmã ecoou fria pela sala, cortando o silêncio pesado que se instalara desde que ela atravessara a porta da casa da nossa mãe, agora vazia. — Vim buscar o que é meu, só isso.
Fiquei ali, parada, com as chaves ainda na mão, sentindo o peso de dezassete anos de silêncio a esmagar-me o peito. O cheiro a naftalina e a móveis antigos misturava-se com a memória dos risos de infância, quando éramos apenas duas meninas a partilhar segredos debaixo dos lençóis.
— Inês… — tentei, mas a palavra morreu-me nos lábios. Ela desviou o olhar, fitando o velho relógio de parede que nunca mais acertou as horas desde que a mãe adoeceu.
A nossa mãe partira há três semanas. O funeral foi breve e desconfortável; trocámos um aceno distante, como duas conhecidas que se cruzam por acaso. Ninguém ousou falar do passado. Agora, restava-nos dividir o que sobrara: uma casa cheia de memórias e mágoas.
— Não quero discutir, Leonor. — Inês abriu a mala e começou a empilhar fotografias, livros, pequenas peças de prata. — Só quero levar as coisas do pai. Ele prometeu-mas antes de morrer.
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. O pai morrera quando tínhamos dez anos. Como podia ela falar de promessas feitas há tanto tempo? E porquê agora? Porque não me procurou antes?
— E nós? — perguntei, a voz trémula. — Não te faz falta nada nosso? Nem sequer uma conversa?
Ela parou por um instante, os olhos fixos numa moldura com uma fotografia antiga: nós as duas, abraçadas no jardim, os joelhos esfolados e os sorrisos abertos. Vi-lhe um tremor nos dedos, mas logo voltou ao trabalho.
— Não compliques, Leonor. Cada uma seguiu a sua vida. Tu ficaste aqui com a mãe, eu fui para Lisboa. Não há mais nada para dizer.
Mas havia tanto por dizer. Lembrei-me das noites em que chorava sozinha no quarto, ouvindo o eco das discussões dos meus pais antes do divórcio. Lembrei-me do dia em que Inês fez as malas e saiu sem olhar para trás. Da última mensagem que lhe enviei — “preciso de ti” — e da resposta que nunca chegou.
A raiva misturava-se com tristeza e culpa. Tantas vezes culpei-a por me deixar sozinha com a mãe doente, por não estar nos aniversários, nos natais, nos dias em que tudo parecia desabar. Mas nunca lhe disse nada disto. Fui guardando tudo cá dentro, como quem guarda cartas antigas num fundo de gaveta.
— Sabes… — comecei, sentando-me no sofá gasto onde tantas vezes adormecemos juntas — eu também queria levar alguma coisa do pai. Não coisas… mas memórias. Histórias. Sinto que perdi tudo quando tu foste embora.
Inês suspirou e largou o que tinha nas mãos. Pela primeira vez em anos, olhou-me nos olhos.
— Achas que foi fácil para mim? — murmurou. — Achas que não me doeu deixar-te? Eu só queria fugir daquela casa cheia de gritos e silêncios…
— E eu fiquei cá presa neles! — atirei, sem conseguir conter as lágrimas. — Fiquei sozinha com tudo aquilo! E tu nunca mais voltaste…
O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Lá fora, ouviam-se os gritos das crianças a brincar na rua, tão diferentes das nossas vozes agora gastas pelo tempo.
Inês sentou-se à minha frente, as mãos trémulas no colo.
— Eu tentei seguir em frente, Leonor. Tentei esquecer tudo isto… Mas cada vez que pensava em ti, sentia-me culpada. Por isso nunca liguei. Por isso nunca voltei.
— E agora? — perguntei baixinho. — Agora vens só buscar o que é teu?
Ela hesitou, olhando à volta como se visse a casa pela primeira vez em anos.
— Não sei o que vim buscar, na verdade… Talvez só queria fechar este capítulo.
Ficámos assim durante minutos intermináveis, cada uma perdida nas suas dores e arrependimentos. A casa parecia respirar connosco, cheia de fantasmas do passado.
Lembrei-me do verão em que fizemos um pacto: nunca nos separaríamos. Tínhamos oito anos e acreditávamos que nada poderia quebrar o nosso laço. Mas a vida não é feita de pactos infantis; é feita de escolhas difíceis e silêncios cruéis.
— Inês… — arrisquei novamente — ainda podemos tentar ser irmãs?
Ela sorriu triste.
— Não sei se sei como se faz isso agora…
— Podemos aprender juntas? — insisti.
Ela levantou-se devagar e veio sentar-se ao meu lado no sofá. Ficámos ali, lado a lado, sem nos tocar, mas sentindo pela primeira vez em muitos anos que talvez houvesse espaço para recomeçar.
— Lembras-te daquele verão em Vila Nova? — perguntei, tentando puxar uma memória feliz.
Ela riu-se baixinho.
— Quando caíste do muro e disseste à mãe que tinhas tropeçado num duende?
Sorri também, sentindo um calor antigo a invadir-me o peito.
— Nunca mais vi duendes depois disso…
O riso transformou-se em lágrimas silenciosas. Abraçámo-nos finalmente, desajeitadas como duas estranhas que tentam recordar como era ser irmãs.
Quando Inês saiu naquela noite, levou consigo apenas uma caixa pequena com cartas do pai e algumas fotografias antigas. O resto ficou ali: memórias partilhadas, dores caladas e uma promessa tímida de recomeço.
Agora sento-me sozinha nesta casa vazia e pergunto-me: quantas famílias se perdem assim, entre silêncios e orgulhos? Quantas irmãs deixam passar uma vida sem se reencontrar verdadeiramente?
E vocês? O que fariam se tivessem uma segunda oportunidade para recuperar alguém perdido pelo tempo?