Quando o Lar Arrefece: A História de Maria, que se Esqueceu de Si Mesma

— Maria, onde estão as minhas camisas passadas? — gritou o António da sala, enquanto eu tentava, pela terceira vez naquela manhã, acalmar o choro do nosso filho mais novo. O ferro de engomar ainda estava quente, mas as camisas, essas, estavam esquecidas no cesto da roupa por passar. Senti o coração apertar-se no peito, uma mistura de culpa e raiva.

“Será que ninguém vê que estou a rebentar pelas costuras?”, pensei, mas não disse nada. Engoli em seco, como tantas vezes antes. O António continuou a resmungar, sem se levantar do sofá, olhos colados à televisão. O cheiro do café queimado invadia a cozinha — mais uma coisa que deixei passar.

A casa era pequena, mas parecia um labirinto de tarefas intermináveis. Entre preparar os pequenos-almoços, arrumar brinquedos espalhados pelo chão e tentar manter alguma ordem, sentia-me cada vez mais invisível. As paredes outrora brancas estavam agora manchadas de dedos pequeninos e promessas esquecidas.

A minha mãe costumava dizer: “Maria, uma mulher tem de saber cuidar da casa para manter a família unida.” Cresci a acreditar nisso. Mas ninguém me avisou que, ao cuidar tanto dos outros, podia esquecer-me de mim própria.

O António não era mau homem. Trabalhava muito, é verdade. Mas quando chegava a casa, esperava que tudo estivesse perfeito — a comida pronta, os filhos limpos e calmos, eu sorridente. E eu tentava. Tentava tanto que já não sabia quem era para além da mulher dele e da mãe dos nossos filhos.

Uma noite, depois de todos adormecerem, sentei-me à mesa da cozinha com uma chávena de chá frio. Olhei para as minhas mãos — ásperas, com pequenas queimaduras do forno e unhas roídas até ao sabugo. “Quando foi a última vez que fiz algo só para mim?”, perguntei-me em silêncio.

Lembrei-me dos meus sonhos antigos: queria ser professora de História. Adorava livros, perder-me em histórias de outros tempos. Mas a vida foi acontecendo — casei cedo, vieram os filhos, o trabalho ficou para depois. “Depois” nunca chegou.

Certa manhã, enquanto levava os miúdos à escola, cruzei-me com a Ana, uma amiga de infância. Estava elegante, sorridente, falava de um curso novo que estava a tirar à noite. Senti inveja — não da roupa ou do cabelo arranjado, mas da luz nos olhos dela. Uma luz que eu já não via nos meus há muito tempo.

— Maria, tens andado desaparecida! — disse ela com um abraço apertado.

Sorri, mas por dentro sentia-me pequena. Conversámos sobre banalidades até que ela perguntou:

— E tu? O que tens feito por ti?

Fiquei sem resposta. O silêncio entre nós foi mais pesado do que qualquer discussão lá em casa.

Nessa noite, tentei falar com o António.

— António… achas que podíamos dividir algumas tarefas? Sinto-me cansada…

Ele olhou-me como se eu tivesse dito algo absurdo.

— Cansada? Mas tu estás em casa! Eu é que ando a trabalhar o dia todo…

As palavras dele caíram como pedras no meu peito. Não insisti. Fui arrumar a cozinha em silêncio.

Os dias passaram e o peso no peito aumentava. Comecei a ter insónias. Às vezes chorava no banho para ninguém ouvir. Sentia-me sozinha mesmo rodeada pela família.

Um domingo à tarde, durante o almoço em casa dos meus pais, a minha mãe reparou nas minhas olheiras.

— Estás bem, filha?

Quis dizer-lhe tudo: o cansaço, a solidão, o medo de nunca mais me encontrar. Mas limitei-me a sorrir e dizer:

— Está tudo bem, mãe.

Ela pousou a mão na minha e disse baixinho:

— Não te esqueças de ti mesma, Maria.

Essas palavras ecoaram na minha cabeça durante dias.

Na semana seguinte, decidi inscrever-me num curso de costura na junta de freguesia. Era só uma noite por semana, mas parecia um luxo impossível. Quando contei ao António, ele encolheu os ombros:

— Faz como quiseres… desde que não falte nada cá em casa.

Na primeira aula senti-me nervosa como uma adolescente. As outras mulheres eram diferentes — algumas mais velhas, outras mais novas — mas todas pareciam carregar histórias parecidas às minhas. Rimos juntas dos nossos erros com as agulhas e linhas tortas. Pela primeira vez em anos senti-me leve.

Comecei a trazer pequenas mudanças para casa: um avental novo feito por mim, almofadas coloridas na sala. Os miúdos repararam primeiro:

— Mãe, fizeste isto sozinha? Está tão giro!

O António demorou mais tempo a notar. Continuava distante, preso à rotina dele. As discussões tornaram-se mais frequentes:

— Agora andas sempre cansada por causa dessas aulas…

— Não é por causa das aulas! É porque nunca me ajudas! — explodi um dia.

Ele ficou calado. Pela primeira vez vi surpresa nos olhos dele.

As semanas passaram e fui ganhando coragem para reclamar o meu espaço. Comecei a sair para caminhar sozinha ao fim da tarde. Lia livros outra vez. Os miúdos começaram a ajudar mais em casa — pequenos gestos que faziam toda a diferença.

Mas nem tudo melhorou de repente. Houve noites em que pensei em desistir de tudo — do casamento, da casa, até de mim própria. O medo do desconhecido era enorme.

Um dia recebi uma proposta para ajudar numa feirinha local com os meus trabalhos de costura. Hesitei — tinha vergonha do que os outros podiam pensar. Mas fui.

No final do dia vendi duas almofadas e ganhei elogios sinceros de desconhecidos.

Cheguei a casa cansada mas feliz. O António olhou para mim com estranheza:

— Estás diferente…

Sorri-lhe pela primeira vez em muito tempo:

— Estou a tentar lembrar-me de quem sou.

Hoje olho para trás e vejo quanto tempo perdi a tentar ser perfeita para todos menos para mim mesma. Ainda há dias difíceis — há sempre roupa por passar e discussões por coisas pequenas. Mas agora sei que mereço mais do que ser apenas o pilar invisível da casa.

Pergunto-me: quantas mulheres como eu existem por aí? Quantas se perderam entre panelas e silêncios? E vocês — já sentiram que se esqueceram de quem são?