O Testamento Escondido: A Dor de uma Filha Esquecida
— Não mexas aí, Inês! — gritou a minha irmã, Joana, quando me viu abrir a gaveta antiga do escritório da nossa mãe. Mas já era tarde. Os meus dedos tremiam ao tocar no envelope amarelecido, selado com cera vermelha. O nome da nossa mãe, Maria do Carmo, estava escrito com aquela caligrafia firme que eu conhecia tão bem. O silêncio caiu sobre nós como um manto pesado.
Sentei-me no chão frio, o envelope nas mãos. Joana ficou de pé, braços cruzados, olhos duros. — Não tens direito — murmurou ela, mas a voz dela soou mais fraca do que queria.
Abri o envelope. O papel cheirava a mofo e a saudade. Li cada linha devagar, sentindo o coração apertar a cada palavra. Quando cheguei ao fim, as lágrimas já me corriam pelo rosto.
— Ela… ela não me deixou nada — sussurrei, quase sem voz.
Joana desviou o olhar. — Não é bem assim…
— Como não é assim? — gritei, a voz embargada. — Está aqui! Ela deixou tudo para ti e para o Pedro! Nem uma palavra para mim! Nem uma lembrança!
O silêncio voltou, desta vez mais pesado. O relógio antigo da sala marcava cada segundo como se fosse uma martelada no meu peito.
Lembrei-me de todas as noites em que cuidei da mãe quando ela ficou doente. Das vezes em que abdiquei dos meus sonhos para ficar ao lado dela, enquanto Joana viajava e Pedro se escondia atrás do trabalho. Lembrei-me das discussões, dos olhares de desaprovação, das palavras nunca ditas.
— Porquê? — perguntei, olhando para Joana como se ela tivesse as respostas que eu precisava.
Ela encolheu os ombros. — A mãe tinha os seus motivos…
Levantei-me de rompante. — Que motivos? O que é que eu fiz de tão grave para ser apagada assim?
Joana não respondeu. Limitou-se a sair da sala, deixando-me sozinha com o papel nas mãos e um buraco no peito.
Os dias seguintes foram um nevoeiro de dor e raiva. O Pedro ligou-me uma vez, voz hesitante:
— Inês, não sabia… A mãe nunca falou disto comigo…
— Pois claro — respondi, fria. — Nunca falam comigo sobre nada.
Desliguei antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa.
A casa da mãe parecia agora um museu de memórias amargas. Cada fotografia na parede era uma facada. O vestido azul que ela me emprestou para o baile da escola ainda estava no armário. O cheiro dela ainda pairava no ar.
Comecei a duvidar de tudo. Será que alguma vez fui amada? Ou fui apenas uma sombra na vida dela?
Procurei respostas nas cartas antigas, nos diários escondidos nas gavetas. Encontrei páginas rasgadas, frases interrompidas:
“A Inês nunca percebeu…”
“Não sei como lhe dizer…”
“O segredo pesa-me…”
O quê? Que segredo era esse?
Confrontei o meu pai numa tarde chuvosa, na casa dele em Cascais.
— Pai, preciso de saber a verdade. Porque é que a mãe me deixou fora do testamento?
Ele olhou para mim com olhos cansados. — Inês… há coisas que é melhor não saberes.
— Não me digas isso! Tenho direito a saber!
Ele suspirou fundo e olhou pela janela.
— A tua mãe… ela tinha medo de te magoar. Havia coisas do passado… coisas entre vocês duas que nunca ficaram resolvidas.
— Que coisas? — insisti.
Ele abanou a cabeça. — Não sei se devo ser eu a contar-te…
Saí dali ainda mais confusa e magoada. O passado parecia um labirinto sem saída.
As discussões com Joana tornaram-se frequentes. Ela acusava-me de só pensar em dinheiro. Eu gritava-lhe que não era isso — era o reconhecimento, era o amor que eu queria.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa, Joana atirou:
— Sempre foste a preferida do pai! A mãe sentia-se posta de parte!
Fiquei sem palavras. Nunca tinha pensado nisso. Sempre achei que era invisível para ambos.
Comecei a recordar episódios antigos: as festas em que o pai me levava e deixava a mãe sozinha; as viagens só comigo; os presentes especiais…
Será que a mãe me via como rival? Será que foi por isso que me afastou?
Procurei consolo nos amigos, mas ninguém parecia compreender a dor de ser rejeitada pela própria mãe mesmo depois da morte.
Os dias foram passando e o vazio crescia dentro de mim. O Pedro tentou aproximar-se:
— Inês, podemos dividir tudo entre nós os três…
Mas já não era sobre dinheiro ou bens materiais. Era sobre dignidade, sobre amor próprio.
Numa noite de insónia, sentei-me à secretária da mãe e escrevi-lhe uma carta:
“Mãe,
Nunca vou perceber porque me deixaste fora do teu testamento. Gostava de acreditar que foi um erro, ou que havia uma razão maior por trás disso tudo. Mas dói. Dói muito sentir-me esquecida por ti. Espero que onde quer que estejas consigas ver o quanto te amei e o quanto precisava de ti até ao fim.
Com amor,
Inês”
Dobrei a carta e guardei-a na mesma gaveta onde encontrei o testamento.
Os meses passaram e aprendi a viver com a ausência e com as perguntas sem resposta. A família nunca mais foi a mesma; os jantares tornaram-se frios, os abraços forçados.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível perdoar quem nos esqueceu? Ou será que há feridas que nunca saram?
E vocês? Já sentiram esta dor de serem esquecidos por quem mais amavam?