Entre Dois Mundos: O Coração de Uma Mãe Quando a Família se Desfaz
— Não entras mais nesta casa enquanto continuares a defender a Inês! — gritou António, a voz dele ecoando pelo corredor como um trovão. A porta bateu com tal força que senti o chão tremer debaixo dos meus pés. Fiquei ali, parada, com a chuva a cair-me no cabelo, as lágrimas misturadas com as gotas frias, sem saber se devia bater outra vez ou simplesmente desaparecer.
Nunca pensei que o meu casamento chegasse a este ponto. Sempre fui aquela que apaziguava as discussões, que fazia o jantar mesmo depois de um dia cansativo no hospital, que sorria para os vizinhos e fingia que estava tudo bem. Mas naquele dia, tudo desabou. Tudo por causa da nossa filha, Inês.
Inês sempre foi diferente. Desde pequena que não se encaixava nos padrões da família do António — gente tradicional, de uma aldeia perto de Viseu, onde as raparigas deviam ser recatadas e obedientes. Mas a minha filha queria estudar Belas-Artes em Lisboa, queria pintar o mundo à sua maneira. António nunca aceitou isso. “Isso não é profissão para ninguém!”, dizia ele, batendo com o punho na mesa.
A discussão começou ao jantar. Inês chegou tarde, com tinta nas mãos e um sorriso cansado. António olhou para ela como se fosse uma estranha.
— Outra vez com essas porcarias? — perguntou ele, apontando para as mãos dela.
— Pai, é o meu trabalho final do curso. Preciso de acabar até sexta-feira — respondeu Inês, tentando esconder as mãos atrás das costas.
— Trabalho? Isso não é trabalho! Trabalho é o que eu faço na fábrica há trinta anos! — gritou António.
Eu tentei intervir, como sempre.
— António, deixa a rapariga em paz. Ela está a esforçar-se…
— Não te metas! — cortou ele, os olhos cheios de raiva.
Foi aí que percebi que já não era só uma questão entre pai e filha. Era uma guerra entre dois mundos: o dele e o meu. O dele, feito de regras e tradição; o meu, feito de sonhos e esperança.
Naquela noite, depois de mais uma discussão acesa, Inês trancou-se no quarto a chorar. Fui ter com ela. Sentei-me na cama e abracei-a.
— Mãe, eu não aguento mais… — sussurrou ela.
— Eu estou aqui contigo — prometi-lhe. E naquele momento soube que faria tudo para a proteger.
No dia seguinte, António encontrou-nos a planear a mudança da Inês para um pequeno quarto alugado em Lisboa. Foi aí que explodiu.
— Se ela sair daqui, nunca mais volta! E tu vais com ela se continuares a apoiar estas maluquices!
O coração apertou-se-me no peito. Olhei para ele e vi um homem perdido, agarrado ao medo de perder a filha para um mundo que não compreendia. Mas vi também a minha filha, com os olhos vermelhos e o corpo tremendo de ansiedade.
— António, por favor… — tentei apaziguar.
— Chega! — gritou ele. — Ou és mãe ou és minha mulher!
E foi assim que me vi na rua, com uma mala na mão e o coração despedaçado.
Passei aquela noite num banco de jardim perto do hospital onde trabalho. A chuva caía sem piedade e eu sentia-me vazia. Lembrei-me dos tempos em que António me escrevia cartas de amor quando eu estudava enfermagem no Porto. Lembrei-me do nascimento da Inês, do sorriso dele quando a pegou ao colo pela primeira vez. Onde é que nos perdemos?
No dia seguinte, fui buscar a Inês à escola de artes. Ela olhou para mim com medo.
— O pai…?
— Não te preocupes — disse-lhe, tentando sorrir. — Vamos ficar bem.
Arranjámos um quarto minúsculo numa casa partilhada em Lisboa. Dormíamos juntas numa cama de solteiro, partilhávamos refeições simples e chorávamos baixinho à noite para não acordar os outros inquilinos. Eu trabalhava turnos duplos no hospital para pagar as contas e ajudar a Inês com os materiais para os trabalhos dela.
Durante meses não ouvi nada do António. A família dele virou-me as costas. A minha mãe ligava-me todos os domingos a perguntar quando é que ia “deixar as teimosias” e voltar para casa.
— Não percebes que estás a destruir a tua família? — dizia ela.
Mas eu sabia que já não havia volta atrás. A Inês precisava de mim mais do que nunca.
Um dia, recebi uma carta do António. O envelope estava amarrotado e reconheci logo a letra dele:
“Maria,
Não sei se algum dia me vais perdoar pelo que fiz. Sinto falta das nossas conversas à noite e do cheiro do teu café pela manhã. Mas não consigo aceitar esta vida nova da Inês. Não consigo aceitar perder-te também.
António”
Li aquelas palavras vezes sem conta. Chorei tanto que pensei que nunca mais teria lágrimas para chorar.
A Inês terminou o curso com distinção. No dia da exposição final, vi-a sorrir como há muito tempo não via. Os olhos dela brilhavam de orgulho e gratidão.
— Obrigada por nunca desistires de mim, mãe — disse ela, abraçando-me com força.
Nesse momento percebi que tinha feito a escolha certa, mesmo que me tivesse custado tudo o resto.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Almada. A Inês está em Paris com uma bolsa de estudos. O António voltou para Viseu e raramente fala comigo. Às vezes pergunto-me se poderia ter feito diferente; se poderia ter sido boa mãe e boa esposa ao mesmo tempo.
Mas depois olho para os quadros da Inês pendurados na minha parede e sinto um orgulho imenso.
Será que todas as escolhas importantes na vida têm sempre um preço tão alto? E vocês? Já tiveram de escolher entre duas pessoas que amam?