O Segredo do Meu Sangue: Entre a Verdade e o Perdão
— Não podes continuar a fugir, Miguel! — gritou a minha mãe, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu batia com a porta da cozinha. O cheiro do arroz de pato queimado misturava-se ao cheiro acre da tensão que pairava no ar. Eu queria responder, mas as palavras estavam presas na garganta, sufocadas pelo medo do que ainda não sabia.
Aquela noite começou como tantas outras em nossa casa em Coimbra: o meu pai sentado no sofá, absorto no telejornal, a minha irmã Mariana a discutir com a minha mãe sobre as notas do liceu, e eu, perdido nos meus próprios pensamentos. Mas tudo mudou quando o telefone tocou. Era a Catarina. O nome dela ainda me faz tremer. Tínhamos terminado há três meses, depois de um romance tão intenso quanto breve. Ela dizia que precisava falar comigo urgentemente.
Saí de casa sem dizer nada, apenas com o telemóvel no bolso e o coração aos pulos. Encontrei-a junto ao Mondego, onde costumávamos passear nas noites de verão. O cabelo dela estava preso num rabo-de-cavalo desleixado, os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Miguel, eu estou grávida — disse ela, sem rodeios.
O mundo parou. Senti as pernas fraquejarem e apoiei-me no corrimão da ponte. Não podia ser. Tínhamos sido cuidadosos… ou pelo menos eu pensava que sim.
— Tens a certeza? — perguntei, quase num sussurro.
Ela assentiu, mordendo o lábio inferior. — E é teu.
Voltei para casa em transe. A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem. Sentou-se ao meu lado na cama e ficou em silêncio até eu desabar.
— Mãe… a Catarina está grávida.
Ela não disse nada durante uns segundos. Depois, pousou a mão no meu ombro e olhou-me nos olhos com uma intensidade assustadora.
— Miguel… há algo que precisas de saber sobre ti. Sobre nós.
O silêncio dela era ensurdecedor. Senti um frio na espinha.
— O teu grupo sanguíneo é AB, não é? — perguntou ela de repente.
Assenti, confuso.
— O teu pai é O negativo. Eu sou A positivo. Sabes o que isso significa?
Fiquei a olhar para ela, sem perceber onde queria chegar.
— Miguel… tu não és filho do teu pai.
As palavras dela caíram como uma bomba. O chão fugiu-me dos pés. A minha infância passou-me diante dos olhos: as tardes a jogar futebol com o meu pai no parque verde do Choupal, as discussões sobre política à mesa, os abraços apertados nos aniversários. Tudo parecia uma mentira.
— Como assim? — consegui balbuciar.
A minha mãe começou a chorar baixinho.
— Foi só uma vez… Eu era jovem, estava zangada com o teu pai… Conheci o António numa festa da faculdade… Nunca pensei que…
Levantei-me de um salto.
— E nunca me disseste nada? Nunca disseste nada ao pai?
Ela abanou a cabeça, envergonhada.
— Ele nunca soube. Sempre te amou como se fosses dele.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Saí de casa sem rumo, vagueando pelas ruas molhadas de Coimbra até ao amanhecer. Quando voltei, o meu pai estava à minha espera na sala.
— A tua mãe contou-me tudo — disse ele, antes que eu pudesse abrir a boca. — Não és menos meu filho por isso.
Mas eu não conseguia olhar para ele da mesma maneira. Passei semanas fechado no quarto, ignorando as mensagens da Catarina e as tentativas da minha irmã de me animar. Sentia-me traído por todos: pela minha mãe, pelo meu pai, por mim próprio por não ter percebido nada antes.
O tempo passou e a barriga da Catarina cresceu. Um dia, ela apareceu à porta de casa com uma ecografia na mão e lágrimas nos olhos.
— Preciso de ti, Miguel. Não consigo fazer isto sozinha.
Olhei para ela e vi o mesmo medo que sentia em mim. Medo do desconhecido, medo de repetir os erros dos nossos pais.
Decidi fazer o teste de paternidade antes de assumir qualquer responsabilidade. Quando os resultados chegaram, quase desmaiei: eu não era o pai da criança.
Confrontei Catarina no mesmo banco junto ao Mondego onde tudo tinha começado.
— Porque mentiste?
Ela chorou ainda mais.
— Tive medo… Não sabia quem era o pai… Tu eras o único que me apoiava…
Senti pena dela, mas também alívio. Ao menos uma parte da minha vida fazia sentido outra vez. Mas o vazio continuava lá: quem era eu afinal? Filho de quem? O António sabia sequer da minha existência?
Procurei-o nas redes sociais durante semanas até finalmente encontrar um perfil antigo no Facebook: António Silva, professor universitário em Lisboa. Mandei-lhe uma mensagem curta e direta:
“Olá António. O meu nome é Miguel Costa. Acho que sou teu filho.”
Ele respondeu dois dias depois: “Podemos falar?”
Fui até Lisboa num sábado cinzento de novembro. Encontrámo-nos num café perto do Campo Grande. Ele era mais baixo do que eu imaginava, cabelo grisalho e olhar cansado.
— A tua mãe contou-me sobre ti há muitos anos — disse ele, mexendo nervosamente na chávena de café. — Mas nunca quis interferir na tua vida.
Ficámos horas a conversar sobre tudo e nada: música, livros, política. Senti uma estranha familiaridade naquele homem desconhecido. Mas quando voltei para Coimbra, percebi que não era ali que pertencia.
Aos poucos fui reconstruindo a relação com os meus pais — ou melhor, com aqueles que me criaram e amaram desde sempre. Perdoei a minha mãe pelo segredo, agradeci ao meu pai pelo amor incondicional e aceitei que família é muito mais do que genética.
Hoje olho para trás e vejo como tudo podia ter sido diferente se não fosse aquela conversa sobre grupos sanguíneos à mesa da cozinha. Às vezes pergunto-me: quantos segredos cabem numa família? E será que alguma vez conhecemos verdadeiramente quem somos?