O Dia em que o Meu Mundo Desabou

— Mariana, onde estiveste? — A voz da minha mãe ecoou pela casa, carregada de uma raiva que eu já conhecia demasiado bem. O relógio da cozinha marcava 8h47. Eu estava atrasada, outra vez. Mas não era apenas o atraso que pairava no ar; havia algo mais, um peso que me esmagava o peito desde que acordei.

— Fui só apanhar ar, mãe. Precisei de pensar — respondi, tentando esconder o tremor na voz. O cheiro a café queimado misturava-se com o perfume barato da minha mãe, criando um ambiente sufocante. O meu pai estava sentado à mesa, o olhar perdido na chávena de café, como se quisesse desaparecer.

— Pensar? Pensar no quê? — Ela aproximou-se, olhos semicerrados. — Não tens nada para pensar. Tens é de ir para a escola e deixar de me dar problemas!

Olhei para o meu pai, à procura de algum apoio. Mas ele limitou-se a encolher os ombros, como sempre fazia. Era assim desde que me lembro: a minha mãe gritava, o meu pai calava-se, e eu ficava ali, no meio do fogo cruzado.

Mas naquele dia, algo estava diferente. O atraso não era só meu. O meu mundo inteiro estava atrasado, como se tudo tivesse parado à espera de uma verdade que ninguém queria dizer.

— Mariana, anda cá — chamou o meu pai de repente, num tom baixo mas firme. A minha mãe bufou e saiu da cozinha, batendo com a porta.

— O que foi agora? — perguntei, sentando-me à frente dele.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em meses. — Preciso que saibas uma coisa. A tua mãe e eu… as coisas não estão bem há muito tempo.

O meu coração disparou. Sempre soube que havia algo errado entre eles, mas nunca quis admitir. — Vão-se separar?

Ele hesitou. — Não sei. Mas há coisas que tens de saber. Coisas sobre mim… sobre nós.

Nesse instante, ouvi a porta da rua bater com força. A minha mãe tinha saído. O silêncio que ficou foi quase ensurdecedor.

— Pai… o que se passa? — sussurrei.

Ele respirou fundo e passou as mãos pelo cabelo grisalho. — Lembras-te daquele verão em que foste passar férias com a tua tia Rosa ao Porto?

Assenti. Tinha 12 anos na altura. Foi um verão estranho; a minha mãe chorava muito ao telefone e o meu pai nunca atendia as minhas chamadas.

— Nessa altura… eu conheci alguém — confessou ele, a voz embargada. — Não foi só uma aventura. Eu… eu apaixonei-me.

Senti o chão fugir-me dos pés. — Apaixonaste-te? Por outra mulher?

Ele assentiu, os olhos marejados de lágrimas. — Chama-se Teresa. E… ela tem uma filha. Uma filha que é tua irmã.

O mundo parou. Uma irmã? Como assim? Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto sem conseguir controlar.

— Porque é que nunca me disseste nada? Porque é que mentiste todos estes anos?

Ele tentou pegar-me na mão, mas afastei-me bruscamente. — Tive medo de te perder… de perder tudo. Mas agora já não aguento mais viver nesta mentira.

Levantei-me de rompante e corri para o meu quarto, trancando a porta atrás de mim. Sentei-me no chão, abraçada às pernas, e deixei-me chorar até não ter mais forças.

As horas passaram devagar. Ouvi a minha mãe voltar a casa e gritar com o meu pai. Ouvi pratos a partir-se, portas a baterem, insultos sussurrados entre soluços. Ouvia tudo através das paredes finas daquele apartamento em Almada.

No dia seguinte, acordei com os olhos inchados e a cabeça pesada. Não queria sair do quarto, mas sabia que tinha de enfrentar aquilo tudo.

Desci as escadas devagar e encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha, com um cigarro aceso entre os dedos trémulos.

— Sabes? — perguntou ela sem me olhar nos olhos.

Assenti em silêncio.

Ela riu-se amargamente. — Sempre soube que ele tinha outra. Só não sabia que tinha uma filha também…

Sentei-me à frente dela e tentei encontrar palavras para dizer alguma coisa, mas não consegui.

— Ele vai embora — disse ela finalmente. — Vai viver com a Teresa.

O silêncio instalou-se outra vez entre nós. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim: raiva do meu pai por ter mentido; raiva da minha mãe por nunca ter lutado; raiva de mim própria por nunca ter visto nada disto antes.

Os dias seguintes foram um borrão de discussões e lágrimas. O meu pai fez as malas e saiu de casa numa manhã cinzenta, sem sequer olhar para trás. A minha mãe afundou-se numa tristeza profunda; passava os dias fechada no quarto ou a beber vinho barato na sala escura.

Eu tentava manter-me à tona: ia à escola como um autómato, respondia mecanicamente aos professores e evitava os olhares curiosos dos colegas. Só a minha melhor amiga Inês sabia o que se passava realmente.

— Mariana, tens de sair dessa casa — disse ela um dia ao telefone. — Vem dormir cá a casa uns dias…

Mas eu não conseguia abandonar a minha mãe naquele estado. Sentia-me responsável por ela, como se fosse eu agora a adulta da casa.

Uma noite, ouvi-a chorar baixinho no quarto dela. Entrei sem bater e encontrei-a sentada na cama, rodeada de fotografias antigas do casamento.

— Mãe…

Ela olhou para mim com olhos vermelhos e cansados. — Fui uma parva, Mariana. Devia ter-te protegido melhor…

Sentei-me ao lado dela e abracei-a com força. Pela primeira vez em muito tempo senti que éramos só as duas contra o mundo.

As semanas passaram e fui aprendendo a viver com aquela nova realidade: um pai ausente, uma mãe quebrada e uma irmã desconhecida algures em Lisboa.

Um dia recebi uma mensagem do meu pai: “Quero apresentar-te à Teresa e à tua irmã.”

Fiquei horas a olhar para o telemóvel sem saber o que responder. Parte de mim queria conhecer aquela irmã secreta; outra parte odiava tudo aquilo e queria esquecer que alguma vez existiu.

Acabei por aceitar encontrar-me com eles num café perto do Campo Pequeno. Quando cheguei lá, vi o meu pai sorridente ao lado de uma mulher elegante e de uma rapariga mais nova do que eu, com cabelo castanho-escuro igual ao meu.

— Olá Mariana — disse ela timidamente.

Senti um nó na garganta mas forcei um sorriso. — Olá…

A conversa foi estranha e desconfortável; ninguém sabia bem o que dizer ou como agir. Mas quando olhei para a minha irmã — porque era impossível negar aquele laço de sangue nos olhos dela — percebi que talvez houvesse ali uma oportunidade para recomeçar.

Voltei para casa naquela noite cheia de dúvidas e mágoa mas também com uma pequena esperança no peito: talvez fosse possível reconstruir alguma coisa dos destroços daquele desastre familiar.

Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi: a inocência, a confiança nos meus pais, a ideia ingénua de família perfeita. Mas também vejo tudo o que ganhei: força para enfrentar a verdade, coragem para perdoar e vontade de construir algo novo para mim mesma.

Será que algum dia conseguimos realmente perdoar quem nos magoa? Ou será que aprendemos apenas a viver com as cicatrizes? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar…