Solidão na Torre: O Drama de Maria Fernandes
— Maria, não vais mesmo tentar falar com ele? — perguntou a minha mãe, com a voz embargada pelo telefone, enquanto eu olhava pela janela do oitavo andar para o céu carregado de Lisboa.
Suspirei. O eco da sua pergunta misturava-se com o barulho dos carros lá em baixo e o som distante de uma criança a chorar no prédio ao lado. — Mãe, o António já fez a escolha dele. Não posso obrigar ninguém a ficar onde não quer estar.
Desliguei antes que as lágrimas me traíssem. O silêncio do apartamento era ensurdecedor. O relógio da cozinha marcava 7h12 e eu ainda não tinha coragem de acordar o Miguel para a escola. Desde que o António saiu de casa, há três meses, tudo parecia mais difícil. Até o simples gesto de preparar o pequeno-almoço se tornara um esforço hercúleo.
Lembrei-me do último dia em que estivemos juntos. António entrou em casa tarde, com o rosto cansado e um olhar que já não era para mim. — Maria, isto não está a resultar. Estou farto de discussões, de silêncios, de fingir que está tudo bem. — As palavras dele ainda ecoavam na minha cabeça como um trovão.
— E o Miguel? — perguntei, quase num sussurro.
Ele desviou o olhar. — O Miguel vai perceber. Tu és forte, Maria. Vais conseguir.
Mas eu não era forte. Ou pelo menos não me sentia assim. Desde então, os dias arrastavam-se entre idas ao supermercado, reuniões na escola e olhares curiosos dos vizinhos no elevador. Dona Rosa, do 6º esquerdo, nunca perdia uma oportunidade para comentar alto demais: — Coitada da Maria, ficou sozinha com o miúdo. O António sempre foi um bom homem…
O Miguel começou a fechar-se em si mesmo. Já não me contava sobre os amigos, nem sobre os sonhos de ser astronauta. Passava horas no quarto, agarrado ao telemóvel ou ao computador. Uma noite, ouvi-o chorar baixinho e senti-me impotente.
Tentei falar com ele ao pequeno-almoço:
— Miguel, queres panquecas hoje?
Ele encolheu os ombros sem me olhar nos olhos. — Tanto faz.
— Filho… se quiseres conversar…
— Não preciso de nada, mãe.
O silêncio entre nós era um muro cada vez mais alto.
No prédio, os rumores multiplicavam-se. Diziam que o António tinha outra mulher, que eu é que tinha sido fria demais, que ninguém sabia o que se passava dentro das nossas quatro paredes. A verdade é que nem eu sabia explicar como tudo se tinha desmoronado tão depressa.
Uma tarde, ao regressar do trabalho, encontrei a minha vizinha Ana à porta do elevador.
— Olá Maria… como estás? — perguntou ela com um sorriso forçado.
— Vou andando… — respondi, tentando evitar conversa.
Ela hesitou antes de continuar:
— Se precisares de alguma coisa… sabes que podes contar comigo.
Agradeci com um aceno de cabeça, mas por dentro sentia-me cada vez mais isolada. À noite, deitada na cama vazia, perguntava-me onde tinha falhado. Teria sido demasiado exigente? Teria deixado de ser interessante para o António? Ou simplesmente a vida tinha-nos levado por caminhos diferentes?
Os dias foram passando e comecei a notar pequenas mudanças em mim. Já não chorava todas as noites. Comecei a sair para caminhar depois do jantar, mesmo que fosse só até à mercearia do bairro. Um dia, cruzei-me com o senhor Manuel, o porteiro do prédio.
— Dona Maria, faz bem sair um bocadinho. A vida não pára por causa das tristezas — disse ele com aquele sotaque alentejano reconfortante.
Sorri-lhe pela primeira vez em semanas.
No trabalho, a minha chefe reparou na minha apatia.
— Maria, tens estado diferente… Se precisares de uns dias…
— Obrigada, doutora Sofia. Mas preciso de manter-me ocupada.
Foi numa dessas tardes solitárias que recebi uma mensagem inesperada do António: “Posso passar para ver o Miguel?”
O coração disparou. Respondi apenas: “Claro.”
Quando ele chegou, Miguel ficou imóvel à porta do quarto. Olhei para os dois homens da minha vida e senti uma dor aguda no peito.
— Olá filho… — disse António, hesitante.
Miguel não respondeu. Ficou ali parado até António se ir embora meia hora depois, derrotado.
Depois disso, Miguel trancou-se ainda mais no seu mundo. Uma noite, apanhei-o a escrever algo num caderno velho.
— O que escreves? — perguntei suavemente.
Ele fechou o caderno rapidamente. — Nada importante.
Sentei-me ao lado dele na cama.
— Sabes… quando eu era pequena também escrevia quando estava triste. Às vezes ajuda pôr cá para fora aquilo que nos magoa.
Miguel olhou-me finalmente nos olhos e vi ali uma tristeza profunda misturada com raiva.
— Porque é que ele foi embora? — perguntou num fio de voz.
Abracei-o com força e chorei com ele pela primeira vez desde que tudo aconteceu.
Na semana seguinte, decidi procurar ajuda profissional para nós os dois. Fomos juntos à psicóloga do centro de saúde e pela primeira vez em muito tempo senti esperança.
As sessões eram difíceis. Miguel recusava-se a falar nas primeiras vezes, mas aos poucos foi abrindo brechas no seu silêncio. Eu própria comecei a perceber que não podia carregar sozinha o peso da culpa e da tristeza.
No prédio continuavam os olhares e os sussurros. Um dia ouvi Dona Rosa dizer à Ana:
— A Maria agora anda sempre tão séria… coitada…
Em vez de me esconder no elevador como antes, olhei-as nos olhos e cumprimentei-as com um sorriso firme. Senti-me mais leve por dentro.
O tempo foi passando e fui aprendendo a viver com a ausência do António. Comecei a fazer voluntariado numa associação local; ajudava crianças com dificuldades escolares e sentia-me útil outra vez. Miguel começou a trazer amigos para casa e voltou a falar dos seus sonhos — agora queria ser engenheiro aeroespacial.
Numa noite chuvosa de novembro, António ligou-me:
— Maria… queria pedir desculpa por tudo. Sei que te magoei muito…
Houve um silêncio pesado entre nós antes de responder:
— Eu também errei, António. Mas agora temos de pensar no Miguel acima de tudo.
Ele concordou e combinámos fazer um jantar os três juntos pela primeira vez desde a separação.
O jantar foi estranho ao início; Miguel estava tenso e eu sentia cada palavra como se fosse uma corda bamba prestes a rebentar. Mas aos poucos fomos falando das pequenas coisas: da escola, do trabalho, das séries que víamos na televisão.
No final da noite, quando António se despediu do Miguel com um abraço tímido, percebi que talvez fosse possível reconstruir alguma coisa — não o casamento perdido, mas uma nova forma de família.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci neste processo doloroso. Ainda sinto saudades do que perdi, mas aprendi a valorizar aquilo que tenho: o amor do meu filho e a força que descobri em mim mesma.
Às vezes pergunto-me: quantas pessoas vivem presas ao passado por medo de mudar? Será que temos coragem suficiente para recomeçar mesmo quando tudo parece perdido?