Acordes de Esperança: O Meu Regresso à Vida em Lisboa
— Mariana, ouves-me? — A voz do meu pai ecoava, trémula, entre as paredes brancas do quarto 312 do Hospital de Santa Maria. Os seus dedos hesitavam nas cordas da guitarra, como se cada acorde pudesse acordar-me do sono profundo onde me encontrava há quase dois anos.
Eu estava presa num lugar sem tempo, onde o som era apenas uma memória distante. Mas naquele dia, algo mudou. Senti uma vibração, uma melodia que me puxava para a superfície. Era o fado que o meu pai sempre tocava nas noites de inverno, quando a luz da cidade se misturava com o cheiro a castanhas assadas e chuva.
Acordei. Não foi imediato — foi como emergir debaixo de água, sufocada pelo medo e pela dúvida. Abri os olhos e vi o rosto do meu pai, envelhecido, marcado por rugas que não estavam lá antes. Ele deixou cair a guitarra, os olhos inundados de lágrimas.
— Mariana! Meu Deus, Mariana! — gritou ele, agarrando-me a mão com força.
A minha mãe entrou a correr, tropeçando na cadeira. O meu irmão, João, ficou parado à porta, como se não acreditasse no que via. O silêncio foi quebrado por soluços e risos nervosos. Eu queria falar, mas a minha voz era um sussurro rouco.
— Onde estou? — perguntei, sentindo a garganta seca.
— Estás em Lisboa, filha. Estás connosco — respondeu a minha mãe, acariciando-me o cabelo.
O tempo tinha passado por mim como um comboio desgovernado. Tinha vinte e três anos quando o acidente aconteceu — um carro desgovernado na Avenida da Liberdade, uma noite de chuva intensa. Lembro-me do cheiro a gasolina, dos gritos abafados e depois… nada. Vinte meses de silêncio absoluto.
Durante esse tempo, a minha família viveu entre a esperança e o desespero. O meu pai deixou de trabalhar para estar ao meu lado todos os dias. A minha mãe perdeu peso, envelheceu dez anos em dois. O João afastou-se dos amigos, tornou-se quase um estranho para si próprio.
— Achámos que te tínhamos perdido — confessou o João numa das primeiras noites depois do meu despertar. — Eu… eu não sabia se devia continuar a acreditar.
Vi nos olhos dele uma dor que nunca tinha visto antes. Senti-me culpada por todo o sofrimento que causei sem querer. Mas também percebi que aquela dor era prova de amor.
Os dias seguintes foram uma mistura de alegria e angústia. Tive de reaprender tudo: falar, andar, até segurar num copo de água. A fisioterapeuta, Dona Teresa, era implacável mas carinhosa.
— Mariana, não desistas agora — dizia ela enquanto me ajudava a levantar da cama. — Já vi milagres acontecerem aqui dentro. Tu és um deles.
À noite, o meu pai continuava a tocar guitarra para mim. Às vezes fado, outras vezes músicas populares portuguesas que me faziam sorrir apesar da dor. A música tornou-se o fio que me ligava à vida antiga e à nova.
Mas nem tudo era luz. A minha mãe começou a afastar-se, fechando-se no quarto durante horas. Um dia ouvi-a discutir com o meu pai na cozinha:
— Não aguento mais esta incerteza! E se ela nunca voltar a ser quem era? E se ficarmos presos nisto para sempre?
O meu pai respondeu baixinho:
— Ela já voltou. Só precisamos de tempo.
Senti-me dividida entre a gratidão e o medo de ser um peso para eles. O João começou a sair mais vezes à noite, voltando tarde e evitando olhar-me nos olhos.
— Não tens de fingir que está tudo bem — disse-lhe um dia.
Ele encolheu os ombros.
— Não sei como lidar com isto, mana. Tu eras sempre tão forte… Agora és tu que precisas de mim e eu não sei se consigo estar à altura.
Chorei muito nessa noite. Mas no dia seguinte decidi lutar ainda mais. Queria ser digna do amor deles.
Os meses passaram e comecei a recuperar lentamente. Voltei a andar sozinha pelos corredores do hospital, depois pelas ruas do bairro onde cresci em Campo de Ourique. O cheiro do pão quente da padaria da Dona Amélia trouxe-me memórias da infância: eu e o João a correr atrás dos pombos no Jardim da Parada.
A cidade parecia diferente — mais fria, mais apressada. Os amigos antigos vieram visitar-me uma ou duas vezes mas depois desapareceram nas suas rotinas agitadas. Senti-me sozinha muitas vezes, mas aprendi a valorizar os pequenos gestos: o sorriso do senhor António do quiosque, o aceno da vizinha D. Rosa.
Um dia, ao regressar do hospital, encontrei os meus pais sentados à mesa da cozinha em silêncio pesado. O meu pai segurava uma carta na mão.
— O que se passa? — perguntei.
A minha mãe olhou para mim com os olhos vermelhos:
— É do banco… Vamos ter de vender a casa se as coisas não melhorarem.
O chão fugiu-me dos pés outra vez. Toda a minha recuperação tinha custado caro: tratamentos privados, fisioterapia intensiva… A nossa poupança desaparecera como areia entre os dedos.
— Isto é culpa minha — sussurrei.
O meu pai levantou-se e abraçou-me:
— Não digas isso nunca mais! Se tivéssemos de perder tudo para te ter de volta, perderíamos sem hesitar.
Mas eu sabia que aquela decisão pesava sobre todos nós. O João começou a trabalhar num café para ajudar nas despesas; eu sentia-me inútil por não poder contribuir.
Foi então que decidi tentar algo novo: comecei a escrever sobre a minha experiência num blogue anónimo. Escrevia sobre as noites em claro no hospital, sobre os medos e as pequenas vitórias diárias. Aos poucos fui recebendo mensagens de pessoas desconhecidas: umas diziam que as minhas palavras lhes davam força; outras partilhavam histórias semelhantes.
Um dia recebi um convite inesperado: uma editora queria publicar o meu testemunho em livro. Chorei ao ler o email — pela primeira vez desde o acidente senti que podia retribuir tudo o que tinha recebido.
O lançamento do livro foi numa pequena livraria em Alfama. O meu pai tocou guitarra enquanto eu lia excertos emocionados diante de uma plateia atenta. A minha mãe sorriu pela primeira vez em muitos meses; o João abraçou-me com força no final.
A vida não voltou ao que era antes — talvez nunca volte. Mas aprendi que há beleza na imperfeição e força na vulnerabilidade. Lisboa continua a respirar comigo; cada acorde da guitarra do meu pai lembra-me que regressei da escuridão graças ao amor deles e à música.
Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem numa só existência? E será que alguma vez conseguimos agradecer verdadeiramente àqueles que nunca desistiram de nós?