“Não és mãe, és uma maldição” – A minha história de perda e renascimento numa família portuguesa

— Não és mãe, és uma maldição! — gritou Rui, com os olhos vermelhos de raiva, enquanto atirava a minha mala para o corredor. O eco daquelas palavras ainda hoje me trespassa o peito como uma faca. Eu, que sempre sonhei com uma família unida, via naquele momento tudo a desmoronar-se à minha frente. O nosso filho, Tiago, dormia no quarto ao lado, alheio ao furacão que varria a nossa casa.

A noite estava fria e húmida. Saí para a rua sem saber para onde ir. As luzes amareladas dos candeeiros pareciam zombar da minha solidão. Sentei-me num banco do jardim em frente ao prédio e chorei até não ter mais lágrimas. Como é que tudo chegou a este ponto? O Rui, o homem por quem larguei tudo em Lisboa para vir viver com ele em Setúbal, agora olhava para mim como se eu fosse o pior dos males.

Tudo começou há dois meses, quando o Tiago começou a ter febres altas e dores nas articulações. Corremos de hospital em hospital, mas os médicos não conseguiam encontrar uma explicação clara. O Rui foi-se tornando cada vez mais distante, irritadiço. Começou a chegar tarde a casa, a evitar olhar-me nos olhos. Eu passava as noites ao lado do Tiago, molhando-lhe a testa com panos frios e rezando baixinho para que tudo passasse.

Uma noite, ouvi Rui ao telefone na varanda:

— Não aguento mais isto, mãe. A Ana só faz as coisas piorarem. Desde que ela entrou na nossa vida que tudo corre mal…

Senti-me esmagada por aquelas palavras. Sempre tentei ser uma boa nora, uma boa esposa. Mas a sogra nunca me aceitou verdadeiramente. Dizia que eu era “moderna demais”, que não sabia cuidar de um lar como as mulheres do tempo dela.

No dia seguinte, Rui chegou a casa mais cedo do trabalho. O Tiago estava pior. Liguei para o INEM e fomos de urgência para o hospital. No caminho, Rui não disse uma palavra. No hospital, enquanto esperávamos notícias do médico, ele virou-se para mim:

— Isto é tudo culpa tua! Se não fosses tão distraída, se cuidasses melhor dele…

— Rui, por favor… — tentei argumentar, mas ele levantou-se e saiu porta fora.

O diagnóstico foi devastador: Tiago tinha uma doença autoimune rara. Os médicos disseram que não havia culpa de ninguém, que era apenas azar. Mas Rui recusava-se a aceitar.

A partir desse dia, a nossa casa tornou-se um campo de batalha silencioso. Eu fazia tudo para manter alguma normalidade para o Tiago, mas sentia-me cada vez mais sozinha. A sogra começou a aparecer todos os dias, trazendo comida e olhares de reprovação.

— No meu tempo, os filhos não ficavam doentes assim — dizia ela enquanto arrumava a cozinha de propósito para mostrar como eu era desorganizada.

Uma tarde, ouvi-a sussurrar ao Rui:

— Ela não serve para ti nem para o teu filho. Só te trouxe azar.

O Rui não respondeu, mas também não me defendeu.

Naquela noite fatídica, depois de mais uma discussão sobre os medicamentos do Tiago, Rui explodiu. Atirou-me à cara todos os nossos fracassos: o emprego que perdi durante a pandemia, as contas em atraso, o cansaço acumulado. E depois veio aquela frase: “Não és mãe, és uma maldição!”

Fui expulsa de casa com uma mala e um telemóvel quase sem bateria. Passei a noite no banco do jardim até que uma vizinha me viu e me convidou para entrar em casa dela. A dona Lurdes era uma senhora idosa que sempre me tratou com carinho.

— Minha filha, ninguém merece passar por isto. Fica aqui até te orientares — disse ela enquanto me servia um chá quente.

Nos dias seguintes tentei falar com o Rui. Liguei dezenas de vezes, mandei mensagens. Ele não respondeu a nenhuma. A sogra atendeu uma vez:

— O Rui não quer falar contigo. O Tiago está bem entregue à família dele.

Senti-me morrer por dentro. Como podia viver sem o meu filho? Procurei ajuda jurídica e social. Disseram-me que teria de esperar pela decisão do tribunal para ver o Tiago.

Os dias passaram-se lentos e dolorosos. Arranjei um trabalho temporário numa pastelaria perto da praia. Todos os dias via mães com filhos ao colo e sentia uma dor insuportável no peito. À noite chorava baixinho na cama da dona Lurdes.

Um dia recebi uma mensagem inesperada da minha irmã Inês:

— Ana, vem passar uns dias connosco no Porto. Vais precisar de força para lutar pelo Tiago.

Fui. No comboio olhei pela janela e vi a minha vida passar como um filme triste: o casamento feliz, o nascimento do Tiago, as tardes no parque… E agora aquele vazio.

No Porto senti-me acolhida pela família da Inês. Ela e o marido ajudaram-me a encontrar um advogado melhor e deram-me ânimo para continuar a lutar.

Meses depois veio a primeira audiência no tribunal de família em Setúbal. O Rui apareceu com a mãe ao lado e um ar frio como nunca lhe tinha visto antes.

— O Tiago precisa da mãe — disse eu ao juiz com lágrimas nos olhos — Não sou perfeita, mas amo-o mais do que tudo nesta vida.

O Rui acusou-me de negligência e instabilidade emocional. A sogra abanava a cabeça em silêncio.

O juiz decidiu que eu podia ver o Tiago aos fins-de-semana alternados enquanto o processo continuava.

A primeira visita foi um misto de alegria e dor. O Tiago correu para mim assim que me viu:

— Mãe! — gritou ele agarrando-se às minhas pernas — Porque é que foste embora?

Abracei-o com toda a força do mundo:

— Nunca fui embora do teu coração, meu amor.

Passámos a tarde juntos no parque onde costumávamos ir antes de tudo ruir. Ele estava mais magro e calado do que antes. Perguntei-lhe se estava feliz:

— Tenho saudades tuas todos os dias — respondeu baixinho.

Prometi-lhe ali mesmo que nunca mais o ia abandonar.

A luta judicial arrastou-se por quase dois anos. Durante esse tempo reconstruí-me aos poucos: arranjei um emprego fixo numa escola primária como auxiliar educativa; aluguei um pequeno apartamento; fiz novos amigos; voltei a sorrir sem culpa.

O Rui acabou por se afastar cada vez mais do Tiago devido ao trabalho e à pressão da mãe dele. Um dia ligou-me:

— Ana… talvez tenhas razão… Talvez o Tiago precise mesmo mais de ti agora…

Não houve pedidos de desculpa nem reconciliação possível entre nós dois, mas finalmente senti que estava a recuperar o meu filho.

Hoje vivo com o Tiago num apartamento modesto mas cheio de amor e esperança. Ele ainda tem consultas regulares no hospital mas está melhor; voltou a sorrir e brincar como antes.

Às vezes olho para trás e pergunto-me: como é possível sobreviver quando nos tiram tudo? Será que alguma vez vamos deixar de ser julgadas pelas nossas falhas enquanto mães? O que é ser mãe senão lutar todos os dias pelo bem dos nossos filhos?

E vocês? Já sentiram que vos tiraram tudo… mas mesmo assim conseguiram recomeçar?