Três Dias de Fome e um Verão de Provações: A História de Alice e Dona Maria

— Alice, já viste a tua avó hoje? — perguntou a Dona Teresa, encostada ao balcão do minimercado, o rosto franzido de preocupação.

A pergunta caiu como uma pedra no meu peito. Não via a minha avó Maria há anos. Desde aquela discussão feia no Natal de 2019, quando as palavras cortaram mais fundo do que qualquer faca. Mas agora, ali, com o sol a bater forte nas ruas de Vila Nova, percebi que não podia continuar a fugir do passado.

— Não, Dona Teresa… — respondi, tentando esconder o embaraço. — Porquê? Aconteceu alguma coisa?

Ela suspirou, baixando a voz:

— Já vai em três dias sem sair de casa. Nem pão veio buscar. E sabes como ela é orgulhosa…

O orgulho. Sempre o orgulho. Era isso que nos separava há tanto tempo. Saí dali com o coração apertado e as mãos a tremer. O caminho até à casa da avó Maria parecia mais longo do que nunca. Cada passo era um confronto com memórias: os verões passados no quintal dela, o cheiro do arroz-doce, as histórias sobre o avô António… e depois, o silêncio.

Bati à porta. Uma vez. Duas vezes. Nada. O medo começou a crescer dentro de mim.

— Avó? Sou eu… a Alice.

Ouvi um arrastar de pés do outro lado. A porta abriu-se devagarinho, revelando uma mulher muito mais pequena do que eu me lembrava. Os olhos dela estavam fundos, mas ainda brilhavam com aquela teimosia familiar.

— Vieste ver se já morri? — disparou ela, sem rodeios.

Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli-as. Não era altura para fraquezas.

— Vim ver se precisas de alguma coisa.

Ela encolheu os ombros e virou costas, deixando-me entrar. A casa cheirava a mofo e solidão. Na cozinha, só havia uma fatia de pão duro e uma chávena de chá frio.

— Porque não foste ao mercado? — perguntei, tentando manter a voz firme.

— Para quê? Para ouvir as línguas das vizinhas? Ou para me lembrarem que estou sozinha?

Sentei-me à mesa em silêncio. O relógio da parede fazia um tic-tac irritante. Lembrei-me das discussões dos meus pais sobre quem devia cuidar da avó depois da morte do avô. Ninguém queria assumir essa responsabilidade. E eu… eu só queria fugir.

— Avó… desculpa — murmurei, quase sem voz.

Ela olhou para mim, surpresa.

— Desculpas não enchem barriga, menina.

Levantei-me de rompante:

— Então vamos ao supermercado! Eu faço o jantar hoje.

Ela hesitou, mas acabou por ceder. No caminho, fomos em silêncio. Senti o peso dos olhares das vizinhas sobre nós, como se estivéssemos num palco improvisado.

No supermercado, ela insistiu em escolher tudo: batatas pequenas, cebolas doces, um pedaço de bacalhau salgado. Eu limitei-me a seguir atrás dela, como quando era criança.

De volta a casa, pus mãos à obra na cozinha. Ela sentou-se à mesa e ficou a observar-me em silêncio.

— Lembras-te quando fazíamos bolos juntas? — arrisquei perguntar.

Ela sorriu de lado:

— Lembro-me que eras desastrada e partias sempre os ovos no chão.

Rimos as duas, pela primeira vez em anos. O gelo começava a derreter.

O jantar foi simples mas reconfortante. Depois de comer, ela encostou-se na cadeira e suspirou:

— Sabes… às vezes penso que devia ter sido diferente contigo. Menos dura.

O nó na garganta apertou-se ainda mais.

— Eu também podia ter tentado mais…

O verão passou devagarinho. Todos os dias ia ver a avó Maria. Às vezes discutíamos por coisas pequenas: ela implicava com a minha roupa curta ou com o telemóvel sempre na mão; eu irritava-me com as histórias repetidas ou com o feitio difícil dela.

Mas havia momentos bons também: tardes inteiras a fazer croché na varanda, passeios pelo jardim público onde ela me contava segredos antigos da família — como o tio Joaquim fugiu para França sem avisar ninguém ou como a bisavó Rosa sobreviveu à gripe espanhola.

Certo dia, encontrei uma carta antiga no fundo da gaveta dela. Era do meu pai para ela, escrita pouco antes dele morrer num acidente de carro há dez anos:

“Mãe,
Se alguma vez eu faltar, cuida da Alice como cuidaste de mim.”

Mostrei-lhe a carta em silêncio. Ela leu-a devagarinho e chorou baixinho pela primeira vez desde que me lembrava.

— Nunca soube como te mostrar amor depois que ele se foi — confessou ela. — Fiquei amarga… zangada com o mundo inteiro.

Abracei-a com força. Senti o corpo dela frágil nos meus braços e percebi que o tempo não perdoa ninguém.

No final do verão, ela adoeceu gravemente. Passei noites em claro ao lado da cama dela no hospital de Vila Nova. Os médicos diziam que era pneumonia, mas eu sabia que era mais do que isso: era solidão acumulada durante anos.

Na última noite antes de ela voltar para casa, segurou-me na mão:

— Obrigada por não me deixares sozinha…

Chorei ali mesmo, sem vergonha nem orgulho.

Hoje olho para trás e penso em tudo o que podia ter sido diferente se tivéssemos falado mais cedo, se tivéssemos perdoado antes das feridas ficarem tão fundas. Será que todas as famílias guardam silêncios assim? Quantas avós e netas se perdem por orgulho?

E vocês? Já tentaram quebrar o silêncio na vossa família antes que seja tarde demais?