Entre a Esperança e o Medo: A História de Inês
— Não chores, Inês. Vai correr tudo bem — sussurrou a assistente social, apertando a minha mão pequenina enquanto atravessávamos o portão do Lar Santa Clara. Mas eu não queria ouvir. O cheiro a lixívia misturado com sopa de feijão pairava no ar, e tudo o que eu queria era o colo da minha mãe. Tinha seis anos e o mundo parecia-me um lugar frio e estranho.
Lembro-me do último olhar da minha mãe, Mariana, antes de desaparecer no corredor do tribunal. Os olhos dela estavam vermelhos, mas não chorou. “Porta-te bem, filha. Eu volto para te buscar.” Aquelas palavras ecoaram na minha cabeça durante meses, anos talvez. No lar, as noites eram longas e cheias de perguntas sussurradas entre lençóis ásperos: “Será que as mães voltam mesmo?” “Será que ela se esqueceu de mim?”
A rotina era sempre igual: acordar cedo, vestir o uniforme azul, pequeno-almoço apressado, escola pública ali ao lado. Havia outras crianças como eu — a Joana, que mordia as unhas até sangrar; o Tiago, que nunca falava de noite; a Sara, que desenhava casas com janelas grandes e luzes acesas. Todos tínhamos uma história parecida, mas ninguém falava muito sobre o passado.
Os domingos eram os piores. As outras crianças iam passar o dia com famílias de acolhimento ou parentes distantes. Eu ficava sentada no banco do jardim, a olhar para o portão, à espera que a minha mãe aparecesse. A dona Lurdes, a educadora mais velha, tentava animar-me:
— Inês, anda ajudar-me a regar as plantas.
Mas eu só abanava a cabeça. “Se eu sair daqui, ela pode não me encontrar”, pensava.
O tempo foi passando. No Natal do meu oitavo ano, recebi uma carta da minha mãe. O envelope estava sujo e amassado. “Querida Inês, desculpa não ter ido buscar-te ainda. Estou a tentar arranjar trabalho e uma casa para nós duas. Não te esqueças de mim.” Li aquelas linhas vezes sem conta até as letras começarem a desaparecer.
No lar, começaram a falar em adoção. A ideia assustava-me. E se eu aceitasse outra família e a minha mãe voltasse? E se ela pensasse que eu já não precisava dela? Uma noite, ouvi a dona Lurdes a conversar com outra funcionária:
— A Inês precisa de estabilidade. Não pode continuar nesta esperança vã.
— Mas ela ainda acredita que a mãe vai voltar…
— Pois acredita. Mas às vezes é preciso aceitar que as pessoas não mudam.
Essas palavras doeram mais do que qualquer castigo.
Foi então que apareceram os Martins — a Ana e o Rui. Vieram visitar-me numa tarde de primavera. Trouxeram um bolo de laranja caseiro e um sorriso nervoso. Sentámo-nos na sala dos brinquedos.
— Olá, Inês! — disse a Ana, com uma voz doce. — Gostavas de vir passar um fim de semana connosco?
Olhei para ela desconfiada. O Rui tentou brincar comigo com um puzzle, mas eu só queria saber:
— E se a minha mãe voltar?
A Ana ficou séria por um momento e depois respondeu:
— Se ela voltar, vamos estar aqui para te apoiar. Mas enquanto isso… gostávamos muito de te conhecer melhor.
Aceitei ir lá passar um fim de semana. A casa deles cheirava a pão quente e tinha paredes cheias de fotografias — gente a rir na praia, aniversários com balões coloridos, um cão velho chamado Tobias que me lambeu as mãos assim que entrei.
No início, sentia-me uma intrusa. Não sabia onde pôr os sapatos, tinha medo de pedir água à noite e chorava baixinho na casa de banho para ninguém ouvir. Mas a Ana sentava-se ao meu lado na cama todas as noites:
— Queres contar-me como foi o teu dia?
Aos poucos fui contando: das saudades da minha mãe, dos medos que tinha à noite, dos sonhos em que ela voltava para me buscar. O Rui ensinou-me a andar de bicicleta sem rodinhas e levou-me ao estádio ver o Benfica jogar — nunca tinha visto tanta gente junta a gritar pelo mesmo motivo.
Mas havia sempre aquela sombra: e se eu estivesse a trair a minha mãe? Um dia perguntei à Ana:
— Achas que ela me odeia por estar aqui?
Ela abraçou-me com força:
— Ninguém te pode odiar por procurares ser feliz.
Os meses passaram e os Martins pediram para me adotar oficialmente. No tribunal, sentei-me entre eles enquanto o juiz lia papéis que eu não entendia bem. No fim, ele olhou para mim:
— Inês, queres fazer parte desta família?
Olhei para os rostos ansiosos da Ana e do Rui e pensei na carta da minha mãe guardada no bolso do casaco. Respirei fundo:
— Quero.
Chorei muito nesse dia — lágrimas de medo e alívio misturadas. A Ana chorou comigo e o Rui apertou-nos aos dois num abraço apertado.
A vida com eles não foi sempre fácil. Tive pesadelos durante meses; às vezes gritava pela minha mãe no meio da noite. Na escola nova, chamavam-me “a miúda do lar” e demorou até fazer amigos verdadeiros. Mas os Martins nunca desistiram de mim.
Um ano depois da adoção, recebi outra carta da minha mãe biológica. Desta vez era curta: “Desculpa, filha. Não consigo dar-te o que mereces. Sê feliz.” Chorei durante horas agarrada à Ana.
— Ela desistiu de mim — soluçava eu.
— Não — disse a Ana suavemente — Ela amou-te à maneira dela. Agora deixa-nos amar-te à nossa maneira também.
Hoje tenho vinte anos e estudo Serviço Social na Universidade do Porto. Quero ajudar crianças como eu — perdidas entre dois mundos, à espera de alguém que lhes diga: “És suficiente assim como és.” Ainda guardo as cartas da minha mãe numa caixa azul no fundo do armário. Às vezes pergunto-me como teria sido se ela tivesse voltado mesmo…
Mas aprendi que família é quem fica quando tudo o resto falha.
E vocês? Já sentiram que tiveram de escolher entre o passado e o futuro? Como se aprende a perdoar quem nos deixou para trás?