O Meu Diário Perdido: Segredos Revelados numa Vila Portuguesa
— Não foste tu, pois não, Inês? — perguntei, com a voz a tremer, enquanto olhava para a minha irmã mais nova, sentada à mesa da cozinha, os olhos fixos no telemóvel.
Ela levantou o olhar, surpreendida, mas não respondeu de imediato. O silêncio entre nós era tão denso que quase podia ouvi-lo. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o nervosismo que pairava no ar. A minha mãe, do outro lado da bancada, fingia arrumar a loiça, mas eu sabia que estava atenta a cada palavra.
O meu diário desaparecera há uma semana. No início, pensei que o tivesse deixado na escola ou perdido no autocarro. Mas quando começaram a aparecer folhas escritas à mão, coladas nos postes da vila — folhas com os meus segredos mais profundos, as minhas inseguranças, as minhas confissões sobre o meu primeiro amor, sobre o medo de não ser suficiente para os meus pais — percebi que alguém o tinha encontrado. E estava a divertir-se à minha custa.
A vila de São Martinho é pequena. Aqui todos se conhecem e todos sabem tudo sobre todos — ou pensam que sabem. Mas ninguém sabia o que eu escrevia naquele caderno azul de capa gasta. Ninguém, exceto eu… e agora, aparentemente, toda a vila.
Na escola, os olhares seguiram-me como sombras. A Joana, que eu pensava ser minha amiga, sussurrou para a Beatriz quando passei por elas no corredor:
— Viste o que saiu hoje? Ela escreveu mesmo aquilo sobre o professor Rui?
O meu coração apertou-se. Não era mentira — escrevi mesmo sobre o professor Rui, sobre como ele me fazia sentir desconfortável com os seus comentários. Mas nunca pensei que alguém fosse ler aquilo. Nunca pensei que alguém fosse expor-me assim.
Em casa, o ambiente tornou-se insuportável. O meu pai começou a chegar mais tarde do trabalho. A minha mãe evitava olhar-me nos olhos. Só a Inês parecia igual a si própria — ou talvez fosse só boa a fingir.
Numa noite de sexta-feira, depois do jantar, não aguentei mais.
— Alguém aqui sabe alguma coisa sobre o meu diário? — perguntei em voz alta, tentando soar firme.
O meu pai pousou o jornal e olhou-me por cima dos óculos.
— Que diário?
— O caderno azul — expliquei. — Alguém está a publicar coisas que só estavam lá escritas.
A minha mãe suspirou.
— Filha, tens de ter cuidado com o que escreves. Nunca se sabe quem pode encontrar…
— Não é justo! — gritei. — Aquilo era privado! Era meu!
A Inês levantou-se da mesa e saiu da sala sem dizer uma palavra. Fiquei ali, sozinha com os meus pais e com uma raiva surda a crescer dentro de mim.
No dia seguinte, acordei com uma mensagem anónima no telemóvel: “Gostaste do segredo de hoje? Amanhã há mais.”
O medo transformou-se em pânico. Quem me queria magoar assim? Comecei a desconfiar de toda a gente: colegas de turma, vizinhos, até dos meus próprios pais. Passei horas a tentar lembrar-me de onde tinha deixado o diário pela última vez. Nada.
Na segunda-feira seguinte, uma nova folha apareceu colada no portão da escola: “A Maria tem medo do escuro e ainda dorme com uma luz de presença.”
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Os risos ecoaram pelo pátio. O Tiago, por quem eu tinha uma paixoneta desde o 8º ano, olhou para mim com um misto de pena e gozo.
— Não sabia que eras tão bebé — disse ele, rindo-se com os amigos.
Fugi para casa antes das aulas acabarem. Tranquei-me no quarto e chorei até não ter mais lágrimas para chorar.
Nessa noite, ouvi a Inês ao telefone no corredor:
— Não posso continuar com isto… Ela está mesmo mal… — sussurrava ela.
O sangue gelou-me nas veias. Saí do quarto devagarinho e encostei o ouvido à porta do corredor.
— Eu só queria pregar-lhe um susto… Não pensei que fosse ficar assim… — continuou ela.
O chão fugiu-me dos pés. Era ela. A minha própria irmã.
Esperei até ela desligar o telefone e entrei na sala de rompante.
— Foste tu! — gritei. — Como pudeste?
A Inês ficou branca como a cal da parede.
— Maria… Eu… Desculpa…
— Porquê? O que te fiz eu?
Ela começou a chorar.
— Tu tens tudo! Os pais só falam de ti! És sempre tu isto, tu aquilo! Eu só queria que reparassem em mim…
A minha mãe apareceu à porta da sala, alarmada pelo barulho.
— O que se passa aqui?
Eu não consegui responder. Sentei-me no sofá e enterrei a cara nas mãos. A Inês continuava a chorar baixinho.
Os dias seguintes foram um borrão de discussões e silêncios pesados. Os meus pais tentaram mediar uma reconciliação entre nós, mas eu sentia-me traída demais para perdoar tão depressa.
A Inês acabou por confessar tudo: encontrou o diário no meu quarto quando procurava um carregador de telemóvel. Primeiro leu por curiosidade; depois, quando percebeu o poder que aquelas palavras tinham sobre mim, não resistiu à tentação de partilhar alguns segredos com as amigas. Quando viu as reações na escola e em casa, já era tarde demais para voltar atrás.
A vila inteira ficou a saber do escândalo das irmãs Costa. Os meus pais foram chamados à escola; houve reuniões com professores e psicólogos; até o pároco fez referência ao caso na missa de domingo: “Devemos perdoar quem nos magoa, mesmo quando nos custa.”
Mas como perdoar quando quem te trai é quem devia proteger-te?
Durante semanas evitei sair de casa. As mensagens anónimas pararam quando confrontei a Inês — ela prometeu nunca mais mexer nas minhas coisas e pediu desculpa publicamente na escola. Mas as cicatrizes ficaram.
A confiança entre nós nunca mais foi igual. Ainda hoje olho para ela e vejo não só a minha irmã mas também a pessoa que me expôs ao ridículo perante toda a vila.
Com o tempo fui recuperando alguma normalidade: voltei às aulas, reencontrei algumas amigas (as verdadeiras), aprendi a guardar os meus pensamentos só para mim ou em folhas que depois rasgo em pedaços minúsculos antes de deitar fora.
Mas nunca mais escrevi um diário.
Às vezes pergunto-me: será possível reconstruir uma relação depois de uma traição destas? Ou há feridas que nunca saram completamente? E vocês, já sentiram algo assim?