O Meu Marido, a Sua Carteira e a Minha Prisão: Uma História de Casamento sem Liberdade
— Mariana, onde é que foste com o cartão multibanco? — A voz do Rui ecoou pela cozinha, fria e cortante, enquanto eu tentava esconder as mãos trémulas atrás do avental. O cheiro do café queimado misturava-se com o nó na minha garganta. — Só fui comprar pão para o pequeno-almoço das crianças, Rui. Não gastei quase nada, podes ver no talão — respondi, tentando manter a voz firme, mas já sentia as lágrimas a ameaçarem cair.
Ele aproximou-se, tirou-me o talão das mãos e olhou para mim como se eu fosse uma miúda apanhada a mentir. — Não te esqueças que eu vejo tudo no extrato. Não quero surpresas, Mariana. Já sabes como é.
Naquele momento, senti-me mais pequena do que nunca. Doze anos de casamento e ainda me sentia uma estranha na minha própria casa. O Rui era o tipo de homem que todos achavam exemplar: trabalhador, educado, sempre pronto para ajudar os vizinhos. Mas dentro de portas, era outra pessoa. Controlava tudo: o dinheiro, as minhas saídas, até as conversas que eu tinha com as minhas amigas. A minha mãe dizia-me sempre: “Mariana, aguenta. É assim que são os homens. Pensa nos teus filhos.” Mas será que era mesmo assim que tinha de ser?
Lembro-me do início, quando tudo parecia perfeito. Conhecemo-nos numa festa de São João em Braga. Ele era charmoso, fazia-me rir, dizia que eu era especial. No primeiro ano de casamento, ainda havia flores e jantares fora. Depois vieram as contas, os filhos — o Diogo e a Matilde — e o Rui mudou. Começou a perguntar onde gastava o dinheiro, porque demorava tanto no supermercado, porque falava tanto ao telefone com a minha irmã.
— Mariana, não te esqueças de passar pela farmácia para comprar o meu medicamento — disse ele uma manhã, atirando-me uma nota de vinte euros como se fosse uma esmola. — E traz o troco.
A humilhação era diária. Eu já nem sabia quem era. Olhava-me ao espelho e via uma mulher cansada, com olheiras fundas e um sorriso forçado para os filhos. O Diogo começou a perguntar porque é que o pai estava sempre zangado comigo. A Matilde chorava quando ouvia os gritos.
Uma noite, depois de mais uma discussão por causa de cinco euros que gastei num lanche com uma amiga, fechei-me na casa de banho e chorei em silêncio. Lembrei-me da Mariana de antigamente: alegre, cheia de sonhos, com vontade de viajar e conhecer o mundo. Onde é que ela tinha ido parar?
No dia seguinte, fui buscar a Matilde à escola e encontrei a professora Ana à porta. Ela olhou para mim com preocupação. — Está tudo bem consigo? Tem andado tão abatida…
Quis dizer-lhe tudo: que me sentia presa, que já não aguentava mais aquela vida. Mas limitei-me a sorrir e a dizer que estava cansada do trabalho em casa.
À noite, enquanto arrumava a cozinha, ouvi o Rui ao telefone com a mãe dele:
— A Mariana não percebe nada de contas. Se não fosse eu, já tínhamos ido à falência.
Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Não era verdade! Eu fazia milagres com o pouco dinheiro que ele me dava. Fazia sopa para três dias, remendava roupa dos miúdos, inventava brincadeiras baratas para não gastar dinheiro em parques ou cinemas.
Comecei a escrever num caderno escondido no fundo da gaveta da roupa interior. Escrevia tudo: os insultos dele, as vezes que me fez sentir inútil, os sonhos que fui deixando para trás. Era o meu segredo, o único sítio onde ainda podia ser eu mesma.
Um dia, a minha irmã Teresa ligou-me:
— Mariana, tens estado tão distante… Precisas de falar?
Desatei a chorar ao telefone. Contei-lhe tudo: o controlo do Rui, o medo constante de errar, a vergonha de não conseguir sair daquela situação.
— Mariana, tu não estás sozinha. Vem passar uns dias cá a casa com os miúdos. Pensa em ti também.
O convite ficou a ecoar na minha cabeça durante dias. Mas como é que eu ia sair? O Rui nunca deixaria.
Na semana seguinte, depois de mais uma discussão por causa das compras do supermercado — “Para que é que compraste iogurtes de marca? Os baratos não servem?” — tomei uma decisão.
Esperei até ele sair para trabalhar e arrumei algumas roupas dos miúdos numa mochila pequena. Peguei no caderno onde escrevia tudo e saí porta fora sem olhar para trás.
Cheguei à casa da Teresa com o coração aos saltos. Ela abriu-me a porta e abraçou-me tão forte que desatei a chorar outra vez.
— Vai correr tudo bem — disse ela baixinho.
Os primeiros dias foram difíceis. O Rui ligava-me dezenas de vezes por dia, deixava mensagens ameaçadoras: “Se não voltares já para casa, nunca mais vês os teus filhos!” Fui à polícia pedir ajuda. Disseram-me para ter calma, para procurar um advogado.
A vergonha era enorme. Sentia-me culpada por ter deixado o Rui, por ter tirado os filhos da casa deles. Mas aos poucos comecei a respirar outra vez. A Teresa ajudou-me a encontrar um emprego numa pastelaria perto da escola dos miúdos. O ordenado era pouco, mas era meu.
Um dia, enquanto limpava mesas na pastelaria, ouvi duas clientes a falar:
— Sabes quem é aquela? É a Mariana, mulher do Rui da farmácia… Dizem que ela fugiu com os filhos!
Senti o olhar delas cravado nas minhas costas como facas afiadas. Mas continuei a trabalhar. Pela primeira vez em anos sentia-me dona da minha vida.
O processo do divórcio foi longo e doloroso. O Rui tentou tudo para me fazer voltar: ameaças, promessas vazias, até chorou à porta da casa da Teresa.
— Mariana, volta para casa! Eu mudo! Fazemos tudo diferente!
Mas eu já não acreditava nele. Os miúdos também começaram a perceber que havia outra forma de viver: sem gritos, sem medo.
Hoje olho para trás e vejo o quanto cresci desde aquele dia em que saí porta fora só com uma mochila e um caderno cheio de mágoas. Não foi fácil reconstruir-me. Ainda tenho medo do futuro, ainda me sinto insegura muitas vezes.
Mas agora sei que mereço mais do que uma vida controlada por alguém que diz amar-me mas só sabe prender-me.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas em casamentos assim? Quantas têm coragem de sair? E vocês… já sentiram que perderam quem eram por causa de alguém?