Traz os Netos, Mas Não Te Esqueças da Carteira: Um Jardim Entre Segredos e Silêncios
— Vais mesmo trazer os miúdos este fim de semana, Leonor? — perguntei ao telefone, tentando disfarçar o tremor na voz. Do outro lado, a minha filha suspirou, aquele suspiro que já conheço de cor, carregado de cansaço e impaciência.
— Sim, pai. Mas olha que não dá para ficar muito tempo. O Miguel tem futebol e a Matilde tem explicações. E… — hesitou — não te esqueças que ainda me deves o dinheiro do supermercado da última vez.
A frase ficou a pairar no ar como uma nuvem negra. Fechei os olhos e respirei fundo, sentindo o cheiro da terra húmida que entrava pela janela da cozinha. O jardim lá fora parecia zombar de mim, tão verde e viçoso apesar do meu corpo cansado. Ellie, a minha mulher, estava sentada à mesa, a separar feijões com as mãos trémulas. Olhou para mim com aqueles olhos azuis já desbotados pelo tempo.
— Outra vez o mesmo? — murmurou ela, sem levantar a cabeça.
— Eles têm razão — respondi, baixinho. — Não podemos continuar a pedir-lhes ajuda sempre que falta alguma coisa.
Ellie largou os feijões e pousou a mão sobre a minha.
— O jardim sempre nos deu tudo. Só que agora… agora já não temos força para ele.
Ficámos em silêncio, ouvindo apenas o tique-taque do relógio e o chilrear dos pardais lá fora. Lembrei-me de quando comprámos esta casa, há quarenta anos. Era pequena, mas tinha aquele pedaço de terra atrás, onde sonhámos criar os nossos filhos e alimentar-nos do que plantássemos. E assim foi durante muitos anos: Leonor e o irmão, Rui, corriam entre as couves e as laranjeiras, riam-se enquanto eu ensinava a Ellie como enxertar uma roseira ou como afastar as lesmas dos morangos.
Mas os anos passaram depressa demais. Rui foi para Lisboa estudar e nunca mais voltou. Leonor ficou por perto, mas sempre ocupada com o trabalho, os filhos, as contas. E nós… nós fomos ficando velhos sem dar por isso.
Naquele sábado, Leonor chegou com os miúdos ao fim da manhã. O Miguel entrou logo pelo quintal adentro, chutando uma bola contra o muro do galinheiro. A Matilde veio ter comigo à cozinha.
— Avô, posso ajudar-te no jardim?
Sorri-lhe, sentindo um nó na garganta. Ela era a única que ainda parecia ver magia naquele pedaço de terra.
— Claro que podes, minha querida. Vamos apanhar tomates para o almoço?
Enquanto colhíamos os frutos vermelhos e maduros, Matilde perguntou:
— Porque é que a mãe está sempre chateada contigo?
Fiquei sem resposta. Como explicar a uma criança que o amor às vezes se transforma em cobrança? Que os laços de sangue podem apertar como cordas? Olhei para Ellie ao longe, sentada à sombra da figueira, e desejei poder voltar atrás no tempo.
O almoço foi tenso. Leonor falava pouco, mexendo no arroz de tomate sem apetite. Quando Ellie lhe perguntou se queria levar ovos para casa, ela respondeu:
— Não vale a pena, mãe. Depois ainda dizem que só venho cá buscar coisas.
O silêncio caiu pesado sobre a mesa. Miguel olhou para mim e murmurou:
— Avô, posso ir jogar PlayStation?
Assenti com um gesto vago. Ellie tentou sorrir para disfarçar.
Depois do almoço, Leonor chamou-me à parte.
— Pai… eu sei que isto não é fácil para vocês. Mas eu também tenho as minhas contas para pagar. Não posso estar sempre a ajudar-vos com dinheiro ou a trazer os miúdos só porque vocês querem companhia.
Senti-me pequeno, encolhido dentro das minhas próprias limitações.
— Eu sei, filha. Só queria… só queria que viesses cá porque gostas de estar connosco. Não porque te sentes obrigada.
Ela desviou o olhar.
— Às vezes sinto que nunca fui suficiente para ti e para a mãe. Sempre foi o jardim primeiro, depois nós.
As palavras dela caíram como pedras no meu peito. Tantas vezes achei que estava a fazer o melhor para todos — plantar batatas em vez de comprar brinquedos caros, ensinar-lhes o valor do trabalho em vez de lhes dar tudo feito. Mas será que errei?
No final da tarde, quando Leonor se preparava para ir embora, Ellie chamou-a à porta.
— Filha… desculpa se alguma vez te fiz sentir menos importante do que este jardim. Só queríamos dar-vos uma vida melhor.
Leonor abraçou-a rapidamente e saiu apressada com os miúdos atrás.
Ficámos sozinhos outra vez. Sentei-me no banco do quintal e olhei para as mãos sujas de terra.
— Achas que falhámos como pais? — perguntei a Ellie.
Ela sorriu tristemente.
— Fizemos o melhor que sabíamos. Mas talvez tenhamos pedido demais deles… ou esperado demais de nós próprios.
Os dias seguintes passaram lentos e iguais. O jardim precisava de ser mondado, mas as minhas costas já não aguentavam tanto tempo dobradas. Ellie começou a esquecer-se das coisas — deixava o fogão ligado ou perdia-se nos nomes das flores que ela própria plantara há anos.
Uma tarde, recebi uma carta do Rui. Dizia que não podia vir visitar-nos este verão porque tinha trabalho em Londres. Mandava um postal com uma fotografia dos netos que nunca conhecemos pessoalmente.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — raiva dele por nos ter deixado sozinhos, raiva de mim por não ter conseguido manter a família unida como prometi à Ellie quando casámos.
No domingo seguinte, Leonor ligou-me outra vez.
— Pai… pensei em arranjar alguém para vos ajudar aí em casa. Uma senhora que possa vir limpar e tratar do jardim umas horas por semana.
Agradeci-lhe com voz embargada. No fundo sabia que era necessário, mas custava-me aceitar que já não era capaz de cuidar daquilo que sempre foi meu orgulho.
Quando a senhora começou a vir cá — Dona Graça, uma mulher robusta e faladora — senti-me inútil pela primeira vez na vida. Ela mondava melhor do que eu alguma vez mondara; colhia os legumes com mais destreza; até conversava com Ellie sobre novelas e receitas enquanto eu ficava sentado ao sol, a ver o tempo passar.
Numa dessas tardes, Matilde veio visitar-nos sozinha. Sentou-se ao meu lado no banco do quintal e ficou calada durante muito tempo.
— Avô… tu estás triste?
Olhei para ela e vi nos seus olhos castanhos uma preocupação genuína — algo raro nos adultos da nossa família ultimamente.
— Estou cansado, filha. Só isso.
Ela pegou na minha mão enrugada e apertou-a com força.
— Eu gosto muito deste jardim… mas gosto mais de ti e da avó.
As lágrimas vieram-me aos olhos sem aviso prévio. Abracei-a com força e prometi a mim mesmo tentar ser menos duro com Leonor — aceitar mais ajuda sem ressentimento; falar mais dos sentimentos em vez de guardar tudo cá dentro até rebentar em discussões inúteis.
Agora passo os dias entre memórias e silêncios: vejo Ellie esquecer-se cada vez mais das coisas simples; vejo Leonor tentar equilibrar tudo sozinha; vejo Rui afastar-se cada vez mais; vejo Matilde crescer depressa demais para o meu gosto.
Às vezes pergunto-me: será que valeu a pena sacrificar tanto pelo jardim? Será que devia ter dado mais atenção aos meus filhos do que às batatas ou às roseiras? Ou será que todos acabamos por repetir os erros dos nossos pais sem perceber?
E vocês? Acham mesmo que família é tudo… ou será só mais um jardim onde nem sempre conseguimos fazer crescer aquilo que queremos?