Entre as Quatro Paredes do Quarto 312: A Canção do Pequeno Ethan

— Mãe, porque é que dói tanto? — perguntou o Ethan, com os olhos marejados, agarrado ao boneco de peluche que já perdeu a cor original.

O relógio marcava três da manhã. O silêncio do hospital era cortado apenas pelo bip insistente das máquinas e pelo sussurrar dos enfermeiros no corredor. Eu sentia o peito apertado, como se cada respiração fosse um esforço para não desabar ali mesmo, ao lado da cama do meu filho. A gastroenterite tinha-o deixado fraco, pálido, e eu já não sabia distinguir o suor da febre das lágrimas que lhe escorriam pelo rosto.

— Vai passar, meu amor. Eu prometo — menti, porque era tudo o que me restava naquele momento: prometer-lhe o impossível.

O pai do Ethan, o Miguel, estava sentado num canto do quarto, com as mãos entrelaçadas e os olhos fixos no chão. Desde que entrámos naquele hospital, quase não trocámos palavras. O medo tinha-nos tornado estranhos um para o outro. Eu queria gritar com ele, culpá-lo por não saber lidar com a dor, mas só conseguia olhar para o Ethan e desejar que tudo aquilo fosse um pesadelo.

Na manhã seguinte, a médica entrou no quarto com um sorriso ensaiado. — O Ethan está a reagir bem ao soro, mas precisamos de continuar atentos. Ele vai ter de ficar mais uns dias connosco.

O Miguel levantou-se de rompante. — Mais dias? Já cá estamos há uma semana! Não há nada mais que possam fazer?

A médica manteve a calma. — Estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance. O mais importante agora é garantir que ele não desidrata.

Eu tentei acalmar o Miguel com um olhar, mas ele desviou-se e saiu do quarto sem dizer palavra. O Ethan olhou para mim, assustado.

— O pai vai voltar — garanti-lhe, mesmo sem saber se era verdade.

As horas arrastavam-se. O cheiro a desinfetante entranhava-se na pele e nos pensamentos. As outras mães no corredor trocavam olhares cúmplices, partilhando silêncios mais eloquentes do que qualquer conversa. Uma delas, a Dona Rosa, aproximou-se de mim enquanto eu tentava convencer o Ethan a comer uma colher de sopa.

— Eles são mais fortes do que parecem — disse-me ela, com um sorriso triste. — O meu Tiago já cá esteve três vezes. Agora corre pelos corredores como se nada tivesse acontecido.

Aquelas palavras deram-me algum alento, mas bastava olhar para o Ethan para sentir o peso da incerteza. Ele estava tão magro, tão diferente do menino que corria pelo jardim da nossa casa em Almada.

Nessa noite, quando já pensava que não aguentava mais um minuto naquele quarto sufocante, ouvi uma melodia suave. Era o Ethan, muito baixinho, a cantarolar a música do seu desenho animado favorito: “O Mundo de Sofia”. A voz era fraca, mas havia ali uma alegria inesperada.

— Queres ouvir comigo? — perguntou ele, estendendo-me o telemóvel.

Coloquei os auscultadores nos nossos ouvidos e deixei-me embalar pela canção infantil. Pela primeira vez em dias, vi um brilho nos olhos do meu filho. Ele começou a mexer os pés debaixo dos lençóis e a sorrir.

— Vês? Ainda sabes dançar! — brinquei, tentando esconder as lágrimas.

O Miguel voltou ao quarto nesse momento e ficou parado à porta, a observar-nos. Pela primeira vez em muito tempo, vi-o sorrir também. Aproximou-se devagar e sentou-se ao nosso lado na cama.

— Lembras-te quando dançávamos todos juntos na sala? — perguntou ele ao Ethan.

O Ethan acenou com a cabeça e puxou-nos para mais perto. Durante aqueles minutos, esquecemos o hospital, as máquinas e até a doença. Éramos só nós três, embalados por uma canção simples e por uma esperança renovada.

Mas a paz foi breve. Na manhã seguinte, o Ethan acordou com dores fortes e começou a vomitar novamente. O pânico instalou-se no quarto: enfermeiros entraram apressados, a médica foi chamada de urgência e eu senti o chão fugir-me dos pés.

— Por favor, ajudem-no! — gritei, agarrada à mão dele.

O Miguel tentava manter-se forte, mas vi as lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto quando os médicos levaram o Ethan para fazer exames.

Ficámos sozinhos no quarto vazio. Pela primeira vez em muito tempo, abracei o Miguel e chorei no seu ombro.

— E se ele não aguentar? — sussurrei.

— Ele vai aguentar — respondeu ele, mas a voz tremia-lhe tanto quanto a minha alma.

As horas seguintes foram um tormento. Cada vez que alguém passava pelo corredor eu saltava da cadeira à espera de notícias. Finalmente, ao fim da tarde, trouxeram-no de volta. Estava exausto mas sorriu quando me viu.

— Mãe… canta comigo outra vez?

Aproximei-me da cama e comecei a cantar baixinho. O Miguel juntou-se a nós e pela primeira vez em semanas senti que éramos uma família outra vez — frágeis, imperfeitos, mas juntos na dor e na esperança.

Os dias seguintes foram de altos e baixos: febres que iam e vinham, noites sem dormir, discussões silenciosas entre mim e o Miguel sobre quem tinha culpa por não termos percebido antes os sintomas do Ethan. Mas também houve momentos de ternura: desenhos feitos à pressa com lápis emprestados pelas enfermeiras; histórias inventadas para distrair o Ethan; risos tímidos quando ele conseguia comer uma bolacha inteira sem vomitar.

Uma tarde, enquanto o sol entrava tímido pela janela do quarto 312, ouvi uma gargalhada vinda da cama do Ethan. Ele estava a ver um vídeo antigo no telemóvel: era ele próprio, há meses atrás, a dançar desajeitadamente na sala de casa ao som da mesma música que agora nos unia ali no hospital.

— Olha mãe! Eu era mesmo engraçado! — disse ele entre risos.

Senti uma onda de emoção tão forte que tive de sair para o corredor para não chorar à frente dele. A Dona Rosa encontrou-me ali e abraçou-me sem dizer palavra.

Na última noite antes da alta hospitalar, fizemos uma pequena festa improvisada no quarto: balões feitos com luvas de látex, bolachas Maria partidas ao meio e muita música infantil no telemóvel. O Ethan dançou sentado na cama enquanto eu e o Miguel batíamos palmas ao ritmo desafinado da canção.

Quando finalmente saímos do hospital, senti-me outra pessoa: mais frágil mas também mais forte; mais consciente daquilo que realmente importa na vida. O Ethan voltou a correr pelo jardim de casa poucos dias depois — ainda magro, ainda cansado — mas com aquele sorriso luminoso que nunca vou esquecer.

Às vezes dou por mim a pensar: quantas famílias vivem dramas silenciosos atrás das portas fechadas dos hospitais? Quantas mães prometem aos filhos que tudo vai ficar bem mesmo quando não têm certezas? Será que algum dia aprendemos verdadeiramente a valorizar os pequenos milagres do quotidiano?

E vocês? Já sentiram esse medo paralisante misturado com esperança? Como encontraram forças para continuar?