Quando o Mundo Desaba: A Luta de uma Mãe Chamada Maria

— Maria, não podes continuar assim! — gritou a minha mãe do outro lado da sala, com a voz embargada entre o desespero e a raiva. — Não vês que estás a arrastar todos connosco?

Naquele instante, senti o chão fugir-me dos pés. O cheiro a café frio misturava-se com o aroma agridoce das flores murchas na mesa da cozinha. O relógio marcava três da manhã, mas ninguém dormia naquela casa há semanas. O Tiago, o meu filho de oito anos, tossia no quarto ao lado, cada expiração um lembrete cruel da nossa impotência.

Eu queria responder à minha mãe, mas as palavras ficaram presas na garganta. O meu marido, António, estava sentado à mesa, de cabeça baixa, os olhos fixos no vazio. Desde que o Tiago fora diagnosticado com leucemia, ele transformara-se num estranho: calado, ausente, quase transparente. A nossa casa, antes cheia de risos e discussões banais sobre futebol ou o preço do pão, tornara-se um campo de batalha silencioso.

Lembro-me do dia em que tudo mudou. Era uma manhã de março, chovia torrencialmente em Lisboa. O Tiago acordou com febre alta e manchas roxas nos braços. Corremos para o Hospital de Santa Maria. As horas arrastaram-se entre análises e olhares preocupados dos médicos. Quando ouvi a palavra “leucemia”, senti-me a afundar num poço sem fundo.

No início, todos vieram: tias, primos, vizinhos. Traziam bolos, palavras de conforto e promessas de ajuda. Mas à medida que os dias se transformaram em semanas e depois em meses de internamentos, tratamentos e incertezas, as visitas rarearam. Os telefonemas tornaram-se mensagens secas: “Força, Maria!” ou “Vai correr tudo bem”. Mas ninguém queria ouvir os meus gritos mudos às três da manhã, quando o Tiago chorava de dor e eu me sentia a enlouquecer.

O António começou a chegar mais tarde do trabalho. Dizia que precisava de tempo para pensar. Uma noite, ouvi-o ao telefone na varanda:

— Mãe, eu não aguento mais isto… A Maria só chora… Eu já nem sei quem ela é.

Senti-me traída. Não por ele não aguentar — eu própria já não sabia como continuar — mas por ele não me dizer nada. Por me deixar sozinha naquele labirinto de medo.

A minha mãe, sempre tão prática, começou a criticar tudo:

— Tens de ser forte pelo Tiago! Não podes desmoronar agora!

Mas como ser forte quando o mundo inteiro parece desabar sobre nós? Quando os amigos evitam olhar-nos nos olhos porque não sabem o que dizer? Quando até os médicos falam connosco em voz baixa, como se tivéssemos uma doença contagiosa?

Houve dias em que pensei em desistir. Em fugir. Em desaparecer. Mas depois olhava para o Tiago — tão magro, tão pálido, mas ainda capaz de sorrir quando lhe lia histórias do Astérix — e sentia uma força estranha dentro de mim.

Uma tarde, enquanto esperávamos pelos resultados de mais uma análise, uma enfermeira chamada Rosa sentou-se ao meu lado.

— Maria, sabes… eu também sou mãe. E já vi muitas mães passarem por isto. Não tens de ser perfeita. Só tens de estar aqui.

Chorei nos braços dela como não chorava há meses. Pela primeira vez alguém não me disse para ser forte. Apenas me deixou ser fraca.

O tempo passou devagar. O António acabou por sair de casa durante uns meses. Disse que precisava de espaço para respirar. A minha mãe ficou comigo, mas o silêncio entre nós era pesado como chumbo.

No Natal desse ano, estávamos só eu e o Tiago no hospital. Ele pediu-me para cantar a canção “A Todos um Bom Natal”. A voz saiu-me trémula, mas ele sorriu e segurou-me na mão.

— Mãe, tu és a minha heroína — sussurrou ele.

Naquele momento percebi que, apesar de tudo — das ausências, dos julgamentos, da solidão — eu ainda era capaz de amar e ser amada.

Hoje o Tiago está melhor. Ainda faz exames regulares e vive com algumas limitações. O António voltou para casa, mas nunca mais fomos os mesmos. A minha mãe envelheceu dez anos neste processo e agora fala pouco sobre o passado.

Às vezes pergunto-me: porque é que as pessoas fogem quando mais precisamos delas? Porque é que a dor assusta tanto? Será que algum dia vamos aprender a estar presentes na dor dos outros sem querer fugir ou julgar?

E vocês? Já sentiram esta solidão? Já foram deixados sozinhos quando mais precisavam?