“Eu Sei Que Não Sou Perfeita, Mas Tu Também Não És o Homem dos Meus Sonhos!” – O Desabafo Que Mudou a Minha Vida

— Eu sei que não sou perfeito, mas tu também não és a mulher dos meus sonhos! — gritou o Miguel, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço, enquanto atirava as chaves para cima da mesa da cozinha. O som metálico ecoou pela casa como um tiro. Fiquei ali, parada, com as mãos ainda molhadas do detergente, a olhar para ele sem saber se devia responder ou fugir.

A nossa filha, a Leonor, estava no quarto a fazer os trabalhos de casa. Tentei manter a voz baixa, mas as palavras saíram-me num sussurro trémulo:

— O que é que disseste?

Ele passou as mãos pelo cabelo, aquele gesto nervoso que sempre fazia quando estava à beira de explodir. — Disseste-me tantas vezes que eu não mudo, que não sou romântico, que não te surpreendo… Mas tu também mudaste, Joana. Já não és aquela rapariga doce por quem me apaixonei.

Senti o chão a fugir-me dos pés. Tantos anos juntos, tantas promessas feitas na igreja de São Vicente, com a família toda a chorar de emoção… E agora estávamos ali, dois estranhos na mesma casa. Lembrei-me do início: dos passeios à beira-rio em Coimbra, das serenatas improvisadas no largo da Sé Velha, das cartas apaixonadas escritas à mão. Onde é que tudo se perdeu?

— Eu mudei porque a vida mudou — respondi, tentando não chorar. — Porque tu deixaste de olhar para mim como antes. Porque passaste a chegar tarde do trabalho e a trazer os problemas do escritório para casa. Porque deixaste de me perguntar como correu o meu dia.

Ele riu-se, um riso amargo. — E tu? Quando foi a última vez que me ouviste sem julgar? Que me deste um abraço sem ser para pedir alguma coisa?

O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. A Leonor apareceu à porta da cozinha, com os olhos grandes e assustados.

— Mãe… está tudo bem?

Sorri-lhe como pude. — Está sim, querida. Vai acabar os trabalhos.

Ela hesitou, mas voltou para o quarto. Assim que desapareceu no corredor, deixei-me cair numa cadeira. Senti-me velha e cansada, como se todos os anos de casamento me tivessem caído em cima naquele instante.

Miguel sentou-se à minha frente. — Joana… eu não quero isto para nós. Mas já não sei como voltar atrás.

Lembrei-me da minha mãe, sentada à mesa da cozinha da nossa casa em Viseu, a dizer-me: “O casamento é feito de cedências.” Mas ninguém me avisou que às vezes cedemos tanto que nos perdemos de nós próprios.

— Achas que ainda vale a pena tentar? — perguntei-lhe.

Ele olhou para mim com uma tristeza funda nos olhos. — Não sei.

Naquela noite dormimos em quartos separados pela primeira vez em quinze anos. Ouvi-o chorar baixinho do outro lado da parede. Eu também chorei, mas em silêncio, para não acordar a Leonor.

Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas: pequenos-almoços mudos, almoços apressados, jantares frios. A Leonor percebia tudo, claro. As crianças sentem sempre antes de ouvirem.

Uma tarde, ao buscar a Leonor à escola primária, encontrei a minha cunhada Rita à porta. Ela olhou para mim com aquele ar de quem sabe mais do que devia.

— Está tudo bem lá em casa? O Miguel anda estranho… — perguntou ela.

Quis dizer-lhe que estava tudo bem, mas as palavras ficaram-me presas na garganta. Acabei por desabafar:

— Não sei se vamos aguentar muito mais tempo assim.

Ela pousou uma mão no meu ombro. — Não deixes que o orgulho fale mais alto do que o amor.

Mas será que ainda havia amor? Ou só saudade do tempo em que tudo era mais fácil?

Nessa noite tentei falar com o Miguel. Esperei que a Leonor adormecesse e fui ter com ele à sala.

— Precisamos de conversar — disse-lhe.

Ele desligou a televisão e olhou para mim como se estivesse a ver-me pela primeira vez em anos.

— Lembras-te de quando sonhávamos ter uma casa cheia de filhos? De quando fazíamos planos para viajar pelo mundo?

Ele sorriu tristemente. — Lembro-me. Mas depois vieram as contas para pagar, os empregos instáveis, as noites sem dormir por causa da Leonor…

— E nós deixámos de ser nós — completei eu.

Ficámos ali sentados lado a lado no sofá, sem saber como reconstruir o que se tinha partido. Falei-lhe das minhas inseguranças: do medo de envelhecer sozinha, da sensação de invisibilidade dentro do próprio casamento. Ele falou-me das pressões no trabalho, do medo de falhar como marido e pai.

— Eu queria ser melhor para ti — disse ele baixinho.

— E eu queria voltar a ser aquela rapariga por quem te apaixonaste — confessei.

No dia seguinte decidi procurar ajuda. Marquei uma consulta com uma terapeuta familiar no centro de saúde local. O Miguel aceitou ir comigo, embora contrariado.

A primeira sessão foi um murro no estômago. A Dra. Teresa obrigou-nos a olhar um para o outro e dizer em voz alta o que sentíamos realmente.

— Tenho medo de te perder — disse-lhe eu, com lágrimas nos olhos.

— Tenho medo de nunca ser suficiente para ti — respondeu ele.

Saímos dali mais leves, mas também assustados com tudo o que tínhamos guardado durante anos.

As semanas passaram e começámos a redescobrir pequenas coisas: um café juntos ao sábado de manhã no café Central; passeios curtos ao fim da tarde; bilhetes deixados na lancheira da Leonor com mensagens para ela ler na escola (“A mãe e o pai adoram-te!”).

Mas nem tudo era fácil. As discussões continuavam por coisas pequenas: quem se esqueceu de comprar pão; quem deixou as luzes acesas; quem não ajudou nos trabalhos da Leonor. Às vezes parecia impossível voltar ao início.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro (o Miguel tinha gasto demasiado num jantar com colegas), sentei-me sozinha na varanda e olhei para as luzes da cidade. Senti uma raiva surda: porque é que ninguém nos prepara para isto? Para o desgaste dos dias iguais, para as mágoas acumuladas?

Lembrei-me do meu pai, sempre tão calado e resignado ao lado da minha mãe. Será que eles também passaram por isto? Ou será que aprenderam a aceitar as imperfeições um do outro sem esperar milagres?

No aniversário do nosso casamento fizemos um esforço: fomos jantar fora só os dois ao restaurante onde tínhamos ido no nosso primeiro encontro. O ambiente era igual, mas nós éramos outros.

— Achas que ainda faz sentido continuarmos juntos? — perguntei-lhe entre dois goles de vinho verde.

Ele ficou calado durante muito tempo antes de responder:

— Não sei se algum dia foste aquilo com que sonhei… Mas também já não sei viver sem ti.

Sorri-lhe com tristeza e ternura ao mesmo tempo. Talvez seja isso o amor maduro: aceitar que ninguém é perfeito e que os sonhos mudam com o tempo.

Voltámos para casa de mãos dadas, mas sabendo que nada seria como antes. A Leonor esperava-nos acordada no sofá e correu para nos abraçar assim que entrámos.

Agora escrevo estas palavras sentada na mesma cozinha onde tudo quase acabou naquela noite fatídica. O Miguel está a preparar o pequeno-almoço e a Leonor ri-se das piadas dele.

Pergunto-me: quantos casais vivem esta mesma luta silenciosa todos os dias? Será possível amar alguém mesmo depois de ver todas as suas imperfeições? Ou será apenas hábito mascarado de amor?