Sombras do Passado: A História de Maria de Lisboa

— Não me venhas dizer outra vez que não podes vir, Inês! — gritei para o telefone, a voz embargada pela frustração e pelo medo de ouvir, mais uma vez, a mesma desculpa.

Do outro lado, a minha filha suspirou. — Mãe, tenho mesmo muito trabalho. O Tomás está com febre e o Miguel tem um teste importante amanhã. Não posso simplesmente largar tudo…

Fechei os olhos, sentindo o peso da solidão a apertar-me o peito. O relógio da sala marcava 19h12. O jantar arrefecia na mesa posta para dois, como se eu ainda acreditasse que alguém viria. Oiço a minha própria respiração, pesada, misturada com o tic-tac do relógio e o eco das palavras da Inês.

— Está bem, filha. — respondi, tentando disfarçar a mágoa. — Dá um beijo aos meninos por mim.

Desliguei antes que ela pudesse ouvir o soluço que me escapou. Sentei-me à mesa, olhei para o prato vazio à minha frente e lembrei-me de outros tempos. Tempos em que a casa estava cheia de risos, discussões por causa dos trabalhos de casa, o cheiro do arroz doce acabado de fazer. Agora, só restava o silêncio.

O meu filho mais velho, o João, também raramente aparecia. Desde que se casou com a Patrícia e foi viver para Oeiras, as visitas tornaram-se cada vez mais espaçadas. Quando vinha, era sempre apressado, com o telemóvel na mão e os olhos postos no relógio.

— Mãe, desculpa, mas tenho uma reunião daqui a pouco. Só vim deixar-te umas compras.

Agradecia-lhe sempre, mas sentia que as compras eram uma espécie de moeda de troca pela ausência dele. Como se pudesse comprar o meu silêncio ou a minha compreensão com sacos do supermercado.

Às vezes perguntava-me onde tinha falhado. Será que fui demasiado exigente? Ou demasiado permissiva? Recordava as noites em claro quando eram pequenos, as febres altas, os medos noturnos. Lembrava-me de como lhes segurava as mãos até adormecerem e de como prometi a mim mesma nunca os deixar sentir-se sozinhos.

Agora era eu quem sentia esse vazio.

Os vizinhos diziam-me para me inscrever num centro de dia ou numa aula de hidroginástica. Mas eu não queria partilhar a minha solidão com estranhos. Preferia ficar em casa, rodeada pelas fotografias antigas: Inês com tranças e joelhos esfolados; João com um sorriso maroto e um dente em falta; eu e o António, ainda jovens e apaixonados, antes de ele partir cedo demais.

Uma noite, depois de mais um aniversário passado sozinha — apenas com uma mensagem automática no WhatsApp — decidi confrontar os meus filhos. Peguei no telefone e escrevi um grupo: “Preciso falar convosco. Amanhã às 20h aqui em casa. É importante.”

No dia seguinte, preparei tudo como antigamente: arroz de pato, salada fresca, mousse de chocolate. Senti-me nervosa como se fosse receber estranhos em vez dos meus próprios filhos.

Chegaram atrasados. Inês entrou primeiro, já com ar cansado.

— Mãe, o que se passa? Estás doente?

João entrou logo atrás dela, pousando o telemóvel na mesa sem sequer me olhar nos olhos.

— O que é tão urgente?

Sentei-me à cabeceira da mesa e respirei fundo.

— Só queria saber se ainda sou importante para vocês. Se ainda sou vossa mãe ou apenas uma obrigação na vossa agenda.

O silêncio caiu pesado sobre nós. Inês olhou para João, procurando cumplicidade ou talvez coragem.

— Mãe… claro que és importante — murmurou ela, mas sem convicção.

João encolheu os ombros.

— Tens de perceber que temos as nossas vidas…

— E eu? — interrompi-o. — A minha vida acabou quando vocês saíram de casa? O que é suposto eu fazer agora? Esperar pelas vossas migalhas de atenção?

Vi lágrimas nos olhos da Inês. João ficou calado, desconfortável.

— Não é fácil para nós também — disse ele por fim. — O trabalho, os miúdos… Às vezes nem temos tempo para nós próprios.

— Mas arranjam tempo para tudo o resto — respondi amargamente. — Para viagens, para jantares com amigos… Só eu é que fico sempre para depois.

A conversa terminou sem grandes conclusões. Jantámos em silêncio. Eles saíram cedo, cada um com uma desculpa diferente.

Nos dias seguintes senti-me ainda mais sozinha. Perguntei-me se tinha feito bem em confrontá-los ou se só tinha aumentado a distância entre nós.

Uma tarde chuvosa, ouvi bater à porta. Era a minha neta Leonor, filha da Inês. Trazia um bolo embrulhado num guardanapo colorido.

— A mãe disse que estavas triste — disse ela timidamente. — Posso ficar contigo um bocadinho?

Senti o coração aquecer pela primeira vez em muito tempo. Sentámo-nos juntas no sofá a ver fotografias antigas. Leonor fez perguntas sobre cada uma delas: quem era aquele senhor de bigode (o meu pai), porque é que a mãe tinha sempre joelhos esfolados (era traquina), porque é que eu sorria tanto nas fotos antigas (porque tinha esperança).

Quando Leonor foi embora, senti uma paz estranha. Talvez não pudesse mudar os meus filhos nem obrigá-los a amar-me como antes. Mas podia dar amor aos meus netos, partilhar histórias e memórias enquanto ainda podia.

Ainda assim, à noite voltava a sentir aquele vazio. Perguntava-me se todas as mães sentem isto quando os filhos crescem: esta mistura de orgulho e abandono, de amor incondicional e mágoa profunda.

Hoje escrevo estas palavras sentada à janela do meu apartamento em Lisboa, vendo as luzes da cidade acenderem-se uma a uma. Pergunto-me se algum dia os meus filhos perceberão realmente o quanto me dói esta distância disfarçada de independência.

Será que é assim para todas as mães? Ou fui eu que errei algures no caminho? Gostava tanto de saber se alguém sente o mesmo…