Quando o Amor Não Chega: A História de uma Filha e a Sua Mãe

— Não podes sair agora, Inês! Preciso de ti! — gritava a minha mãe da sala, a voz trémula, enquanto eu tentava calçar os sapatos à pressa. O relógio marcava sete da manhã e eu já estava atrasada para o trabalho. Senti o peso da culpa a esmagar-me o peito, como tantas outras vezes.

— Mãe, eu volto logo depois do turno. O João pode vir cá hoje à tarde — tentei argumentar, mas sabia que era inútil. O João, o meu irmão mais velho, raramente aparecia. Sempre com desculpas: reuniões, viagens, compromissos importantes. Eu era a única que ficava. Sempre.

A minha vida parecia um ciclo sem fim de cuidados, remédios e noites mal dormidas. Tinha vinte e oito anos quando o médico nos disse que a doença da minha mãe era degenerativa e que ela precisaria de apoio constante. O meu pai já tinha partido há muito tempo; restávamos nós as duas e, ocasionalmente, o João, quando se lembrava que tinha família.

No início, prometi a mim própria que não deixaria a doença dela consumir a minha juventude. Mas os dias foram-se transformando em anos e, sem dar por isso, deixei de sair com amigas, recusei convites para viagens e até terminei um namoro porque “não era justo para ele”. A casa tornou-se o meu mundo. A rotina era sempre igual: preparar o pequeno-almoço, ajudar a minha mãe a vestir-se, dar-lhe os medicamentos, limpar a casa, ir trabalhar e voltar para repetir tudo outra vez.

Às vezes, sentia inveja das colegas que falavam dos filhos ou das férias em Espanha. Eu tinha histórias de hospitais e consultas. A minha mãe era tudo para mim — mas também era o meu cárcere.

Lembro-me de uma noite em particular. Estava exausta, sentada no sofá com as mãos na cabeça. A minha mãe chamou-me:

— Inês… desculpa. Sei que te estou a tirar a vida.

Olhei para ela, os olhos dela cheios de lágrimas. Senti um nó na garganta.

— Não digas isso, mãe. Eu faço isto porque te amo.

Mas no fundo, havia uma raiva surda. Porquê eu? Porquê sempre eu?

O João vinha de vez em quando, sempre com presentes caros e palavras bonitas. A minha mãe sorria-lhe como se ele fosse um herói. Eu era invisível — ou pior, transparente. Um dia, depois de mais uma dessas visitas relâmpago, confrontei-a:

— Porque é que o tratas como se fosse o filho perfeito? Ele não está cá quando precisas!

Ela ficou em silêncio durante uns segundos e depois disse:

— Ele é teu irmão. Não quero perder nenhum de vocês.

Senti-me traída. Não era justo.

Os anos passaram e a doença dela agravou-se. Passei a trabalhar menos horas para poder estar mais tempo em casa. O dinheiro começou a faltar. Pedi ajuda ao João — ele prometeu ajudar financeiramente, mas nunca cumpriu.

No último Natal que passámos juntas, ela estava muito fraca. Segurei-lhe a mão enquanto ouvíamos músicas antigas na rádio. Ela olhou para mim com uma ternura triste.

— Inês… obrigada por tudo.

Chorei baixinho nessa noite, sem saber que seria a última vez que ouviria a voz dela.

Quando ela morreu, senti-me vazia. Passei dias sem sair do quarto, perdida entre memórias e remorsos. O João apareceu no funeral com um fato novo e lágrimas nos olhos — lágrimas que me pareceram tão falsas como as promessas dele.

Depois veio o choque final: ao abrir o testamento da minha mãe, descobri que ela tinha deixado tudo ao João — a casa onde vivi toda a vida, as poupanças que juntos tínhamos amealhado com tanto sacrifício. Fiquei sem chão.

— Isto deve ser um erro! — gritei ao advogado.

Mas não era. A minha mãe tinha deixado uma carta para mim:

“Minha querida Inês,
Sei que isto pode parecer injusto, mas quero que sigas em frente sem te prenderes ao passado ou à casa onde tanto sofreste por mim. O João precisa de estabilidade; tu precisas de liberdade para viveres finalmente a tua vida. Perdoa-me se te magoei. Amo-te sempre.”

Liberdade? Era isso que ela achava que me estava a dar? Senti-me traída de novo — como se todos os anos de sacrifício não tivessem valido nada.

O João tentou falar comigo:

— Inês… podemos dividir as coisas. Eu não sabia disto…

Mas eu não queria ouvir. Não queria nada dele.

Passei semanas num limbo emocional: raiva, tristeza, nostalgia. Os vizinhos diziam-me para ser forte, para recomeçar noutro lugar. Mas como se recomeça quando tudo aquilo que és foi construído à volta do cuidado por outra pessoa?

Arrendei um quarto pequeno numa vila próxima e comecei a trabalhar numa pastelaria local. Os clientes eram simpáticos; alguns reconheciam-me da aldeia e perguntavam pela minha mãe. Cada vez que respondia sentia uma dor aguda no peito.

À noite, sozinha no quarto frio, pensava nos anos perdidos — nas festas não vividas, nos amores não experimentados, nos sonhos adiados indefinidamente.

Um dia recebi uma carta do João:

“Inês,
Sei que nunca fui o irmão que merecias. Falhei contigo e com a mãe demasiadas vezes. Não sei se algum dia me vais perdoar, mas quero ajudar-te agora — não por obrigação, mas porque és minha irmã e porque te admiro pela força que tiveste todos estes anos.
João”

Li aquelas palavras vezes sem conta. Parte de mim queria rasgar a carta; outra parte queria acreditar que ainda havia algo para salvar entre nós.

Comecei lentamente a reconstruir-me: inscrevi-me num curso de costura na junta de freguesia; fiz novas amizades; até aceitei sair para jantar com um colega da pastelaria chamado Miguel — um homem simples, com olhos gentis e mãos calejadas do trabalho.

Mas as feridas estavam longe de sarar. Às vezes acordava sobressaltada com o nome da minha mãe nos lábios; outras vezes sentia uma raiva surda pelo João e pela injustiça da vida.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito tudo igual? Teria sacrificado tanto por alguém que no fim me deixou sem nada? Ou será que o amor verdadeiro é mesmo assim — dar sem esperar nada em troca?

E vocês? Já sentiram que deram tudo por alguém… e ficaram sem nada? Como se recomeça depois disso?