Trinta Anos de Amor, Uma Noite de Segredos: O Meu Nome é Leonor
— Leonor, precisamos de falar. — A voz do António ecoou pela cozinha, fria como o mármore da bancada onde eu cortava cebolas para o jantar. Olhei para ele, tentando decifrar se era mais uma das suas crises de meia-idade ou apenas cansaço do trabalho. Mas o olhar dele não deixava dúvidas: algo estava prestes a desabar.
— Diz lá, António. — tentei manter a voz firme, mas as mãos tremiam-me.
Ele hesitou, desviou o olhar para a janela, como se procurasse coragem nas luzes da rua. — Eu… eu vou sair de casa. Estou apaixonado pela Teresa.
O nome dela caiu como uma pedra no fundo do meu estômago. Teresa. A minha melhor amiga desde os tempos do liceu em Coimbra. A mulher com quem partilhei segredos, risos e lágrimas. Senti o chão fugir-me dos pés.
— Não pode ser… — sussurrei, mas ele já tinha tomado a decisão. — Há quanto tempo?
— Há mais de um ano. — respondeu, sem conseguir olhar-me nos olhos.
O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Senti-me ridícula, traída não só pelo homem com quem partilhei trinta anos de vida, mas também pela amiga que sempre considerei uma irmã.
Naquela noite, depois de ele sair com uma mala pequena e um pedido envergonhado para que eu não fizesse “uma cena”, sentei-me no chão da sala e chorei até não ter mais lágrimas. O relógio marcava três da manhã quando me levantei, determinada a não ser apenas vítima desta história.
No dia seguinte, tentei ligar à Teresa. O telefone tocou até cair no voicemail. “Olá, aqui é a Teresa. Deixa mensagem.” Desliguei sem dizer nada. Passei os dias seguintes num estado entre o choque e a raiva, a tentar perceber onde é que tudo tinha começado a correr mal.
A minha filha, Inês, ligou-me logo que soube. — Mãe, queres que vá aí?
— Não, filha. Preciso de estar sozinha. — menti. Na verdade, precisava de alguém que me dissesse que tudo isto era um pesadelo.
Os meus pais já tinham partido há anos, e o meu irmão mais novo, Rui, vivia em Braga com a família dele. Senti-me sozinha como nunca antes.
Uma semana depois, decidi ir à casa da Teresa. Precisava de respostas. Quando cheguei ao prédio dela em Benfica, hesitei à porta. O cheiro familiar do corredor trouxe-me memórias de tardes passadas a conversar sobre tudo e nada.
Toquei à campainha. Ela abriu a porta com um ar cansado, olhos vermelhos.
— Leonor…
— Porquê? — perguntei, sem rodeios.
Ela baixou os olhos. — Não sei explicar… aconteceu. Não planeámos nada disto.
— E isso desculpa alguma coisa? — A minha voz saiu mais alta do que queria.
Ela chorou. Eu chorei também. No fim, saí dali sem respostas e com uma dor ainda maior.
Os dias passaram lentos. Voltei ao trabalho no hospital, onde sou enfermeira há vinte anos. Os colegas olhavam para mim com pena disfarçada. Só a Dona Emília teve coragem de perguntar:
— Então, Leonor… como estás?
Respondi com um sorriso forçado: — Sobrevivendo.
Numa noite chuvosa de novembro, enquanto arrumava papéis antigos na arrecadação para tentar ocupar a cabeça, encontrei uma caixa com cartas antigas do meu pai. Entre elas estava uma carta endereçada à minha mãe, datada de 1978. O conteúdo deixou-me gelada:
“Querida Maria Helena,
Se algum dia a Leonor descobrir a verdade sobre o seu nascimento, espero que me perdoe por ter guardado este segredo durante tanto tempo…”
O resto da carta estava rasgado.
O coração batia-me descompassado. Que verdade era aquela? Liguei ao Rui naquela noite.
— Rui, lembras-te de alguma coisa estranha sobre quando eu nasci?
Ele ficou em silêncio por uns segundos longos demais.
— Mãe contou-me uma vez… mas disse para nunca te dizer nada. Que eras demasiado sensível.
— Rui! Diz-me agora!
Ele suspirou: — O pai não era teu pai biológico. Mãe engravidou antes de conhecer o pai…
Senti o mundo girar à minha volta. Toda a minha vida tinha sido construída sobre uma mentira? Quem era então o meu verdadeiro pai?
Passei noites em claro a tentar juntar as peças do puzzle da minha vida. Falei com tias afastadas, procurei registos antigos no hospital onde nasci. Descobri que a minha mãe tinha tido um breve relacionamento com um homem chamado Manuel Silva antes de conhecer o meu pai “oficial”.
Procurei pelo nome dele nos registos telefónicos e acabei por encontrar um número em Setúbal. Liguei sem saber o que dizer se alguém atendesse.
— Estou? — respondeu uma voz rouca do outro lado.
— Desculpe… está a falar com Manuel Silva?
— Sim… quem fala?
— Chamo-me Leonor… acho que posso ser sua filha.
O silêncio foi tão longo que pensei que ele tinha desligado.
— Leonor…? A Maria Helena…?
— Sim…
Marcámos encontro num café à beira-mar em Setúbal. Quando o vi entrar — um homem alto, cabelo grisalho e olhar triste — senti uma estranha familiaridade.
Conversámos durante horas. Ele contou-me como amou a minha mãe mas ela escolheu outro caminho por pressão da família dela. Disse-me que sempre pensou em mim mas nunca quis “estragar” a vida que ela construiu.
Voltei para Lisboa com o coração dividido entre raiva e alívio por finalmente saber quem era.
Entretanto, António tentava manter contacto por causa da Inês e do nosso filho mais novo, Miguel. Mas cada conversa era tensa e cheia de silêncios desconfortáveis.
Um dia, Inês apareceu em minha casa com os olhos vermelhos:
— Mãe… o pai quer vender a casa para dividir tudo ao meio.
Senti uma fúria antiga crescer dentro de mim:
— Depois de tudo ainda tem coragem?
Ela chorou no meu ombro:
— Não quero escolher lados…
Abracei-a forte:
— Não tens de escolher nada, filha. Isto é entre mim e ele.
As discussões sobre dinheiro tornaram-se frequentes e desgastantes. António queria “seguir em frente”; eu queria justiça depois de trinta anos dedicados à família dele e à nossa casa.
No meio deste caos todo, comecei a sair mais com colegas do hospital. A Dona Emília arrastou-me para um jantar numa sexta-feira chuvosa num restaurante típico em Alfama.
Foi lá que conheci o João — viúvo há pouco tempo, sorriso tímido e olhos gentis. Conversámos sobre música portuguesa antiga e sobre como Lisboa mudara nos últimos anos.
Pela primeira vez em meses senti-me viva outra vez. Começámos a sair aos fins-de-semana para passeios junto ao Tejo ou idas ao teatro municipal.
Aos poucos fui reconstruindo pedaços de mim mesma que julgava perdidos para sempre: voltei a pintar aquarelas (algo que adorava em jovem), inscrevi-me num curso de fotografia e até viajei sozinha até ao Gerês para caminhar pelas montanhas.
A relação com António nunca voltou ao normal — mas aprendi a perdoar-lhe (e à Teresa) para poder seguir em frente sem rancor.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que cortava cebolas na cozinha enquanto o mundo desabava à sua volta. Descobri segredos dolorosos sobre as minhas origens mas também encontrei novas formas de amar e ser amada.
Pergunto-me muitas vezes: quantas vidas cabem numa só vida? E será possível recomeçar depois dos quarenta e cinco anos? Talvez nunca tenha todas as respostas… mas sei agora que sou capaz de sobreviver — e até de ser feliz — depois da tempestade.