Entre a Fé e o Silêncio: O Apartamento que Quase Desfez a Minha Família
— Não admito, Mariana! Não admito que o teu marido ponha em causa a nossa palavra! — A voz do meu pai ecoava pela sala, carregada de mágoa e raiva, enquanto a minha mãe, sentada no sofá, chorava baixinho, os olhos vermelhos de tanto tentar apaziguar o impossível.
Eu estava ali, no meio deles, com as mãos trémulas e o coração aos pulos. O apartamento na Rua das Flores, aquele T2 com varanda para o Tejo, era suposto ser a nossa prenda de casamento. Um gesto de amor dos meus pais, diziam eles. Mas agora, tudo parecia um castigo.
O Miguel, o meu marido, estava encostado à parede, calado, mas eu sentia-lhe a tensão nos ombros. Ele nunca se sentiu bem-vindo na minha família. Talvez por ser do Porto, talvez por não ter um emprego fixo quando nos conhecemos. O meu pai nunca lhe perdoou isso. E agora, com o apartamento, tudo veio ao de cima.
— O apartamento é vosso — repetiu o meu pai, mas a voz já não tinha convicção. — Mas não admito desconfianças! — E saiu da sala, batendo com a porta.
Ficámos ali, eu, o Miguel e a minha mãe. Ela olhou para mim com uma tristeza tão funda que me doeu mais do que qualquer grito.
— Mariana, filha… — disse ela, baixinho. — Não deixes isto destruir-vos.
Mas como não deixar? O Miguel queria que tudo ficasse escrito, preto no branco. “E se um dia os teus pais se zangam connosco? E se decidem tirar-nos o apartamento?” — perguntava ele. Eu compreendia-o. Mas também compreendia os meus pais, que viam nisso uma afronta à sua generosidade.
Nessa noite, em casa, o silêncio era insuportável. Sentei-me na cama e chorei como há muito não chorava. O Miguel tentou abraçar-me, mas eu afastei-o.
— Não percebes que me estás a obrigar a escolher? — gritei-lhe. — Entre ti e a minha família!
Ele ficou calado. Depois saiu do quarto e ouvi-o fechar a porta da sala com cuidado. Fiquei ali sozinha, a olhar para o teto, a sentir-me perdida.
Na manhã seguinte, fui trabalhar como um autómato. Os colegas perguntaram se estava tudo bem e eu sorri como se nada fosse. Mas por dentro sentia-me a desmoronar.
À hora do almoço, sentei-me num banco do jardim da empresa e rezei. Não sou muito religiosa, mas naquele momento só queria sentir que alguém me ouvia. Pedi força. Pedi paz. Pedi que Deus me ajudasse a não perder quem amava.
Os dias passaram e o ambiente em casa piorou. O Miguel insistia no contrato de doação; os meus pais recusavam-se sequer a falar no assunto. Os jantares de domingo foram cancelados. A minha mãe mandava mensagens curtas: “Está tudo bem?” Eu respondia sempre: “Sim.” Mentira.
Uma noite, acordei sobressaltada com um pesadelo: via-me sozinha no apartamento vazio, as paredes nuas e frias. Senti um aperto no peito tão forte que tive de me levantar para respirar.
Fui até à sala e vi o Miguel sentado no sofá, de cabeça entre as mãos.
— Não consigo dormir — disse ele sem me olhar.
Sentei-me ao lado dele. Ficámos em silêncio durante minutos intermináveis.
— Mariana… — começou ele, hesitante. — Eu só quero proteger-nos. Não quero que um dia fiquemos sem nada.
— E eu só quero que a minha família aceite quem tu és — respondi-lhe, com lágrimas nos olhos.
Ele pegou-me na mão.
— Achas que isto algum dia vai passar?
Não soube responder-lhe.
No domingo seguinte, fui à missa sozinha. Sentei-me na última fila e chorei durante quase toda a celebração. No final, o padre António aproximou-se de mim.
— Mariana, posso ajudar?
Contei-lhe tudo: o apartamento, os meus pais, o Miguel, o medo de perder tudo.
Ele ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Às vezes, Deus não nos tira os problemas. Dá-nos força para os enfrentar. Já pensaste em rezar com eles? Juntos?
A ideia pareceu-me absurda. Os meus pais não rezavam há anos; o Miguel era agnóstico. Mas naquela noite falei com ambos.
— Quero juntar-vos cá em casa — disse-lhes ao telefone. — Só quero que conversemos. Por favor.
No sábado seguinte, estavam todos na nossa sala: eu, o Miguel, os meus pais e até a minha irmã mais nova, a Inês, que nunca se metia em nada mas agora olhava para mim com preocupação.
O ambiente era tenso; ninguém sabia por onde começar.
— Antes de falarmos do apartamento… — disse eu, com a voz trémula — queria pedir-vos uma coisa estranha: podemos rezar juntos?
O silêncio foi absoluto. O Miguel olhou para mim surpreendido; o meu pai franziu o sobrolho; a minha mãe sorriu tristemente; a Inês encolheu os ombros.
— Porquê? — perguntou o meu pai.
— Porque preciso de paz — respondi-lhe. — E acho que todos precisamos.
Fechámos os olhos e eu comecei uma oração simples: pedi compreensão, pedi perdão pelos nossos erros e pedi que Deus nos ajudasse a encontrar um caminho.
Quando abri os olhos, vi lágrimas nos olhos da minha mãe e até o meu pai parecia mais calmo.
A conversa que se seguiu foi dura: houve acusações, mágoas antigas vieram ao de cima, mas pela primeira vez em semanas falámos sem gritos nem portas batidas.
No fim da noite ficou decidido: os meus pais fariam um contrato simples de doação para nos dar segurança; o Miguel prometeu confiar mais neles; eu prometi nunca mais esconder os meus sentimentos até ser tarde demais.
Não foi um final feliz de conto de fadas. Ainda hoje há feridas que demoram a sarar. Mas naquela noite senti algo mudar dentro de mim: uma paz estranha e profunda.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias se destroem por orgulho ou medo? Quantas vezes deixamos de falar quando devíamos rezar juntos? Será que aprendemos alguma coisa com tudo isto?