A Casa dos Sonhos e o Coração Partido: Um Relato de Lisboa
— Não foi para isto que sonhámos, Miguel! — gritou a Ana, com os olhos marejados, enquanto atirava as chaves da casa nova para cima da mesa de mármore. O som metálico ecoou pela sala vazia, ainda cheirando a tinta fresca. Eu fiquei parado, com as mãos nos bolsos, sentindo o peso de cada palavra dela como se fossem pedras atiradas ao meu peito.
Naquele momento, tudo o que tínhamos construído — literalmente — parecia desmoronar. A nossa casa em Benfica, um T3 modesto mas acolhedor, tinha sido trocada por esta moradia moderna em Oeiras, com vista para o Tejo e espaço para os filhos que nunca vieram. Lembro-me de quando desenhámos juntos a planta da casa, sentados à mesa da cozinha antiga, rindo e sonhando alto. Mas agora, entre nós, só restavam silêncios e acusações.
— Tu nunca estás presente! — continuou ela, a voz embargada. — Achas que basta trabalhar horas infinitas para pagar isto tudo? E eu? E nós?
Eu queria responder, dizer-lhe que tudo aquilo era por nós, que cada hora extra no escritório era para garantir um futuro melhor. Mas as palavras ficaram presas na garganta. Em vez disso, sentei-me no sofá novo — ainda com o plástico — e olhei para as paredes brancas, vazias de quadros e de vida.
A verdade é que a casa dos sonhos se tornara um palco de pesadelos. A minha mãe nunca aceitou a Ana. “Ela não é para ti, Miguel. Não tem fibra para aguentar as dificuldades”, dizia-me sempre que podia. O meu pai limitava-se a encolher os ombros e a mudar de canal na televisão. O meu irmão mais novo, Rui, só aparecia para pedir dinheiro ou favores.
No Natal passado, tentei reunir todos à mesa da nova casa. A Ana fez questão de cozinhar bacalhau à Brás como a minha mãe fazia, mas ninguém elogiou. A minha mãe criticou o tempero, o Rui chegou atrasado e saiu cedo, e o meu pai adormeceu no sofá antes da sobremesa. A Ana chorou no quarto enquanto eu lavava a loiça sozinho.
Os dias passaram e a distância entre nós cresceu. As discussões tornaram-se rotina: sobre dinheiro, sobre filhos que não vinham, sobre sogros intrometidos e amigos que se afastaram. Eu refugiava-me no trabalho; ela nas séries e nos livros. Às vezes cruzávamo-nos no corredor como dois estranhos.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as contas da casa — “Isto é insustentável!”, gritou ela — saí para apanhar ar. Sentei-me nos degraus da entrada e olhei para o céu escuro de Lisboa. Lembrei-me do dia em que pedi a Ana em casamento no Miradouro de Santa Catarina. Ela disse sim com lágrimas nos olhos e prometeu que juntos enfrentaríamos tudo.
Mas ninguém nos avisou que o “tudo” podia ser tão pesado.
A pressão aumentava: as prestações do banco, as expectativas da família, os olhares dos vizinhos que nos invejavam sem saberem da nossa dor. Uma tarde, recebi uma chamada do hospital: o meu pai tinha tido um AVC. Corri para lá, deixando tudo para trás. A Ana ficou em casa sozinha.
No hospital, vi a minha mãe desabar pela primeira vez. “Miguel, preciso de ti”, disse ela entre soluços. Senti-me dividido: queria estar ali por ela e pelo meu pai, mas também sabia que estava a perder a Ana aos poucos.
Quando voltei para casa nessa noite, encontrei-a sentada na varanda, embrulhada numa manta.
— Achas que ainda faz sentido? — perguntou-me sem me olhar nos olhos.
Sentei-me ao lado dela. O silêncio era pesado.
— Não sei — respondi finalmente. — Mas quero tentar.
Ela sorriu tristemente e encostou a cabeça ao meu ombro. Ficámos assim até o sol nascer.
Nos meses seguintes tentei ser mais presente. Levava flores sem razão aparente, preparava jantares simples e desligava o telemóvel ao fim de semana. Mas as feridas eram profundas demais. A Ana começou a sair mais com amigas; eu voltei a trabalhar até tarde.
Um dia cheguei a casa e encontrei uma carta em cima da mesa:
“Miguel,
Amo-te, mas não consigo continuar assim. Esta casa tornou-se demasiado grande para nós dois e demasiado pequena para os nossos sonhos partidos. Preciso encontrar-me antes de me perder completamente.
Ana”
Sentei-me no chão frio da cozinha e chorei como há muito não chorava. Liguei-lhe dezenas de vezes naquela noite; nenhuma chamada foi atendida.
Os dias seguintes foram um borrão: trabalho, visitas ao hospital, silêncios ensurdecedores em casa. A minha mãe recuperou lentamente; o meu pai nunca mais falou como antes. O Rui continuou ausente.
Comecei a reparar em detalhes que antes me escapavam: o eco dos meus passos na casa vazia, a luz do fim da tarde atravessando as janelas enormes sem ninguém para partilhar aquele momento. Os vizinhos deixaram de cumprimentar; talvez sentissem o peso do fracasso estampado no meu rosto.
Meses depois, recebi os papéis do divórcio. Assinei-os sem ler; sabia que não havia mais nada a dizer.
Hoje vivo sozinho nesta casa grande demais para mim. Às vezes passeio pelos corredores e lembro-me das risadas da Ana, dos planos para um jardim cheio de crianças que nunca tivemos. Outras vezes sento-me na varanda e olho para o Tejo, perguntando-me onde errei.
Será que valeu a pena sacrificar tanto por paredes bonitas? O que faz realmente uma casa ser um lar?
E vocês? Já sentiram que perderam tudo mesmo quando parecia que tinham conquistado o mundo?