Entre Dívidas e Silêncios: O Peso de Ser Mãe em Portugal
— Achas mesmo que isto era o melhor para nós? — A voz do Paulo ecoou pela cozinha, cortando o silêncio pesado da noite. Eu estava a tentar adormecer o Miguel, o nosso bebé de seis meses, enquanto a sopa fervia no fogão e a Leonor e o Tiago discutiam pelo comando da televisão na sala. Senti um nó na garganta, mas não respondi de imediato.
— Fala comigo, Marta! — insistiu ele, já com aquele tom entre o exasperado e o cansado. — Não vês que estamos enterrados em dívidas? Que não temos dinheiro para nada? E tudo porque tu quiseste mais um filho…
O Miguel começou a chorar mais alto, como se sentisse a tensão no ar. Peguei nele ao colo, embalei-o, e tentei manter a voz firme:
— Não fui só eu que quis o Miguel. Tu também disseste que querias uma família grande…
Ele bufou, virou-me as costas e saiu da cozinha. Fiquei ali, sozinha com o choro do bebé e o cheiro da sopa quase a queimar. Senti as lágrimas a quererem sair, mas engoli-as. Não podia fraquejar agora. Não à frente dos miúdos.
A verdade é que sempre sonhei com uma casa cheia de crianças. Cresci numa aldeia perto de Viseu, filha única de pais já velhos e cansados. Sempre invejei os vizinhos com irmãos, as casas barulhentas e cheias de vida. Quando conheci o Paulo na faculdade do Porto, ele dizia que também queria muitos filhos. Ríamos dos nomes que daríamos aos nossos futuros rebentos enquanto partilhávamos bifanas no café da esquina.
Mas agora tudo parecia diferente. O Paulo chegava tarde do trabalho, cada vez mais calado, cada vez mais distante. Eu tinha deixado o meu emprego de assistente administrativa quando engravidei da Leonor, porque não tínhamos ninguém para ficar com ela e as creches eram caras demais. Depois veio o Tiago, e agora o Miguel. Tentei fazer uns biscates — costura para vizinhas, bolos para festas — mas nunca era suficiente.
As contas começaram a acumular-se depois do nascimento do Miguel. A renda subiu, a luz aumentou, o supermercado parecia engolir metade do ordenado do Paulo. Ele começou a ficar irritadiço, a descarregar em mim pequenas frustrações: “Gastaste isto para quê?”, “Outra vez iogurtes de marca?”, “Não sabes poupar?”
Uma noite, depois de todos dormirem, sentei-me à mesa da cozinha com uma folha de papel e uma caneta. Escrevi todos os gastos do mês: renda, água, luz, gás, supermercado, fraldas, leite em pó… O saldo era sempre negativo. Senti-me esmagada por uma culpa surda. Será que tinha mesmo sido egoísta? Será que devia ter dito não ao terceiro filho?
No dia seguinte, tentei falar com ele.
— Paulo… precisamos de conversar.
Ele nem levantou os olhos do telemóvel.
— Sobre o quê?
— Sobre nós… sobre isto tudo. Não podemos continuar assim.
Ele suspirou.
— Marta, eu estou farto de falar. Não há nada para dizer. Só temos de aguentar.
— Mas eu sinto-me sozinha… — arrisquei.
Ele levantou-se bruscamente.
— Sozinha? E eu? Achas que isto é fácil para mim? Trabalho dez horas por dia para chegar aqui e ouvir choros e discussões! — A voz dele subiu de tom e vi a Leonor espreitar da porta do quarto.
— Não grites… — pedi baixinho.
Ele saiu de casa sem dizer mais nada.
Naquela noite chorei baixinho na almofada para não acordar ninguém. Senti-me miserável. No dia seguinte acordei cedo e fui ao mercado vender uns bolos que tinha feito durante a noite. Ganhei vinte euros. Não era muito, mas era alguma coisa.
Os dias passaram assim: eu a tentar esticar cada cêntimo, ele cada vez mais ausente. A Leonor começou a ter pesadelos à noite; o Tiago fazia birras por tudo e por nada; o Miguel chorava sem parar. A casa parecia encolher-se à nossa volta.
Um sábado à tarde, a minha mãe ligou-me:
— Marta, estás bem? Tens andado tão calada…
Quis dizer-lhe tudo — que estava exausta, que sentia o casamento a desmoronar-se, que tinha medo de não conseguir dar aos meus filhos o que eles precisavam — mas limitei-me a responder:
— Está tudo bem, mãe. Só cansaço.
Ela percebeu logo pela voz.
— Olha filha… se precisares de alguma coisa…
Desliguei antes que as lágrimas me traíssem outra vez.
Nessa noite, depois de adormecer os miúdos, sentei-me ao lado do Paulo no sofá.
— Paulo… eu sei que isto está difícil para os dois. Mas precisamos de nos apoiar um ao outro. Não podemos ser inimigos dentro da mesma casa.
Ele olhou-me finalmente nos olhos. Vi ali um cansaço antigo, uma tristeza funda.
— Eu só queria dar-vos uma vida melhor… — murmurou ele.
— Eu também — respondi baixinho.
Ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Pela primeira vez em meses senti que talvez ainda houvesse esperança para nós.
Mas no dia seguinte tudo voltou ao mesmo: contas por pagar na caixa do correio, discussões por ninharias, silêncios pesados à mesa do jantar.
Às vezes dou por mim a olhar para os meus filhos enquanto dormem e pergunto-me se algum dia vão perceber o quanto lutámos por eles. Se algum dia vão perdoar-nos por não lhes termos dado mais.
Hoje escrevo estas palavras enquanto ouço o Miguel ressonar no berço improvisado ao lado da máquina de lavar roupa. O Paulo ainda não chegou do trabalho; não sei se vai chegar cedo ou tarde ou se vai querer falar comigo ou fingir que não existo.
Pergunto-me: será mesmo justo carregar sozinha esta culpa? Ou será que somos todos vítimas das nossas escolhas e das circunstâncias? Quantas Martas há por aí a sentir-se assim? E vocês — já sentiram este peso?