Entre as Sombras da Serra: Um Segredo na Casa dos Pais

— Mãe, foste tu que deixaste a janela da sala aberta ontem à noite?

O silêncio caiu pesado na cozinha, apenas interrompido pelo som da colher a bater na chávena de café. A minha mãe olhou-me de soslaio, franzindo o sobrolho.

— Não, Mariana. Porque perguntas?

Respirei fundo, tentando controlar o tremor na voz. — É que… esta manhã encontrei pegadas de lama no corredor. E o tapete estava todo desalinhado.

O meu pai, sentado à cabeceira da mesa, largou o jornal e lançou-me um olhar cansado. — Lá estás tu com as tuas manias, filha. Isto é uma casa antiga, faz correntes de ar. E pegadas… deve ter sido o cão do vizinho, que volta e meia entra pelo quintal.

Mas eu sabia que não era isso. Desde que voltei para casa dos meus pais, depois do divórcio, tudo parecia diferente. Não era só a solidão das noites frias na serra de Sintra, nem o eco dos meus próprios passos pelos corredores. Era uma sensação constante de que alguém me observava, de que havia algo — ou alguém — a mais naquela casa.

Durante dias tentei ignorar. Mas as pequenas coisas acumulavam-se: uma porta entreaberta que eu tinha a certeza de ter fechado, comida desaparecida da despensa, um cheiro estranho no sótão. Falei com o meu irmão, Rui, quando ele veio jantar connosco ao domingo.

— Achas mesmo que alguém anda cá em casa? — perguntou ele, rindo-se. — Mariana, tu sempre foste muito imaginativa…

— Não estou a inventar! — respondi, sentindo a raiva a subir-me à garganta. — Há sinais! Vocês é que não querem ver!

A minha mãe suspirou e pousou a mão sobre a minha. — Filha, estás cansada. Tens passado por muito… Talvez devas procurar ajuda. Sabes que te amamos.

Aquelas palavras magoaram mais do que qualquer outra coisa. Não era loucura. Eu sabia o que via. Mas ninguém me acreditava.

Nessa noite não consegui dormir. O vento uivava lá fora e as sombras dançavam nas paredes do meu quarto. Levantei-me e percorri a casa em silêncio. Quando passei pelo corredor do sótão, ouvi um ruído abafado — como se alguém se mexesse lá em cima.

O coração disparou no peito. Peguei numa lanterna e subi as escadas devagarinho, cada degrau rangendo sob os meus pés. A porta do sótão estava entreaberta.

— Quem está aí? — sussurrei, a voz quase inaudível.

Silêncio.

Empurrei a porta com a ponta dos dedos e iluminei o interior com a lanterna. O feixe de luz varreu caixas velhas, malas empoeiradas… e então vi: uma manta amarrotada no chão e restos de comida embrulhados em papel.

O choque gelou-me o sangue. Alguém estava mesmo ali.

Desci as escadas a correr e tranquei-me no quarto. Passei a noite em claro, ouvindo cada estalido da madeira como se fosse um passo furtivo.

No dia seguinte contei tudo à minha família. O meu pai ficou furioso.

— Isto é grave! Se alguém anda aqui dentro… Vou chamar a GNR!

Mas a minha mãe hesitou. — E se for alguém conhecido? Alguém em apuros?

A discussão acendeu-se entre eles. O Rui tentava acalmar-nos, mas eu sentia-me cada vez mais isolada. Ninguém queria acreditar totalmente em mim, mas também não podiam ignorar as provas.

Nessa tarde, enquanto os meus pais discutiam na cozinha, decidi agir sozinha. Esperei até ao anoitecer e voltei ao sótão em silêncio absoluto. Desta vez levei comigo o telemóvel para gravar qualquer coisa suspeita.

Quando abri a porta devagarinho, vi uma figura encolhida num canto escuro. Era um rapaz novo, talvez da minha idade ou um pouco mais novo, com olhos assustados e roupas sujas.

— Por favor… não chames a polícia — murmurou ele, levantando as mãos em sinal de rendição.

O choque deu lugar à compaixão. Sentei-me no chão à sua frente e perguntei-lhe quem era.

— Chamo-me Tiago… Fugi de casa dos meus tios em Lisboa. Eles… eles batiam-me. Não tinha para onde ir. Vi esta casa vazia durante o dia e entrei… Só queria um sítio quente para dormir.

As lágrimas corriam-lhe pelo rosto magro. Senti um nó na garganta.

— Porque não pediste ajuda?

Ele encolheu os ombros. — Ninguém acredita em mim. Nunca acreditam.

Aquelas palavras ecoaram dentro de mim como um espelho partido. Eu também sentia isso: ninguém me ouvia, ninguém me levava a sério.

Levei-o à cozinha e contei tudo aos meus pais e ao Rui. O meu pai ficou indignado:

— Isto é inadmissível! Não podemos simplesmente acolher um estranho!

A minha mãe olhou para mim e depois para Tiago. — E se fosse o nosso filho? Se fosse a Mariana?

O Rui ficou calado, mas vi nos olhos dele uma centelha de empatia.

Depois de muita discussão, concordámos em chamar os serviços sociais — mas deixámos Tiago ficar connosco até eles chegarem.

Durante aqueles dias, vi como a minha família se dividia: o meu pai desconfiado e rígido; a minha mãe protetora; o Rui dividido entre os dois lados; e eu, no meio daquele turbilhão de emoções, sentia-me finalmente compreendida por alguém.

Tiago contou-nos histórias terríveis sobre os tios, sobre noites passadas na rua, sobre fome e medo. A minha mãe chorava baixinho à noite; o meu pai trancava todas as portas antes de dormir.

Quando os serviços sociais vieram buscar Tiago, senti um vazio enorme dentro de mim. Ele abraçou-me antes de sair:

— Obrigado por acreditares em mim quando ninguém mais acreditou.

Depois disso, as coisas mudaram cá em casa. O meu pai tornou-se mais fechado; a minha mãe mais ansiosa; o Rui afastou-se um pouco de todos nós.

Eu própria comecei a duvidar das minhas percepções: teria feito o certo? Teria posto todos em perigo? Ou teria finalmente quebrado o ciclo do silêncio?

Agora sento-me muitas vezes à janela da sala, olhando para as sombras da serra ao entardecer e perguntando-me: quantos segredos cabem dentro de uma família? E quantas vezes fechamos os olhos ao que está mesmo à nossa frente?