O Regresso à Vila das Memórias: Entre o Passado e o Perdão

— Não acredito que és tu, Leonor. — A voz dele ecoou pelo pátio vazio, rouca, como se também ela tivesse envelhecido quarenta anos.

O banco de madeira, gasto pelo tempo e pelas histórias de gerações, estava ali, no mesmo sítio, à sombra do velho plátano. Senti o coração apertar, como se tivesse voltado a ser aquela rapariga de dezassete anos, cheia de sonhos e medos, prestes a ouvir as palavras que mudariam tudo.

— Olá, Miguel. — O meu tom saiu mais frio do que queria. Não sabia se devia sorrir ou fugir dali.

O silêncio entre nós era pesado. O vento trazia o cheiro a terra molhada e a nostalgia de uma infância passada naquela vila minhota, onde todos se conheciam e os segredos eram difíceis de esconder.

Quarenta anos. Quarenta anos sem pisar aquelas pedras irregulares, sem ouvir o sino da igreja ao longe, sem sentir o olhar curioso das vizinhas por detrás das cortinas. Voltei porque a minha prima Teresa insistiu: “Anda, Leonor, faz-te bem. A vila mudou, mas há coisas que nunca mudam.”

Mal sabia ela que o que nunca mudava era a dor de um coração partido.

Sentei-me ao lado dele, sentindo o peso dos anos e das palavras não ditas. Miguel olhou-me de lado, os olhos azuis agora mais baços, mas ainda capazes de me desarmar.

— Pensei tantas vezes neste momento — confessou ele, baixinho. — Mas nunca achei que tivesses coragem de voltar.

— Não voltei por ti — menti. — Voltei porque precisava de fechar capítulos.

Ele sorriu, amargo.

— E achas que se fecham capítulos assim tão facilmente?

Lembrei-me do último verão antes de partir para Lisboa. Da festa da aldeia, das promessas sussurradas ao luar e do bilhete que encontrei no meu cacifo na manhã seguinte: “Desculpa. Não posso.”

Nunca soube ao certo porque Miguel me deixou assim, sem explicações. Só soube que o meu mundo desabou e que nunca mais consegui confiar em ninguém da mesma forma.

— Porque é que o fizeste? — perguntei finalmente, a voz embargada.

Ele passou as mãos pelo rosto, como se tentasse apagar as rugas do tempo.

— O meu pai… — começou ele, hesitante. — O meu pai ameaçou expulsar-te da vila se eu não acabasse contigo. Disse que tu eras má influência, que querias fugir para a cidade e levar-me contigo. Eu era um miúdo, Leonor. Tive medo.

Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim. Lembrei-me do senhor António, sempre tão severo, sempre a controlar tudo e todos. Mas nunca imaginei que pudesse ser capaz de tal crueldade.

— E nunca pensaste em falar comigo? Em confiar em mim?

Miguel abanou a cabeça.

— Fui cobarde. E paguei caro por isso. Casei com a Maria do Céu porque era o que esperavam de mim. Tive filhos, trabalhei na fábrica… mas nunca te esqueci.

As lágrimas ameaçavam cair. Olhei para as janelas da escola, agora fechadas e cobertas de pó. Lembrei-me das tardes passadas ali dentro, dos sonhos partilhados com as amigas, das discussões com a minha mãe sobre o futuro.

A minha mãe… Ela também já não estava cá para me abraçar ou para me dizer “Eu avisei-te”. Partiu há dez anos, levando consigo metade das minhas raízes.

— Sabes — disse eu, tentando controlar a voz — Lisboa não foi fácil. Trabalhei em três sítios ao mesmo tempo para pagar o quarto minúsculo onde vivia. Houve dias em que só queria voltar para cá… mas depois lembrava-me de tudo e seguia em frente.

Miguel olhou para mim com uma tristeza profunda.

— E encontraste alguém?

Sorri tristemente.

— Tive alguém durante uns anos. O Rui era bom homem, mas eu nunca consegui entregar-lhe tudo. Acho que uma parte de mim ficou presa aqui… neste banco.

O silêncio voltou a instalar-se entre nós. O sino da igreja tocou as seis horas e senti uma pontada no peito. Era aquela hora em que costumávamos encontrar-nos às escondidas, longe dos olhares dos nossos pais.

— A Maria do Céu morreu há cinco anos — disse Miguel de repente. — Fiquei sozinho com os miúdos… Bem, já são adultos agora. O João foi para França, a Inês ficou por cá.

Assenti em silêncio. Sabia bem como era ver os filhos partirem em busca de uma vida melhor.

— E tu? Tens filhos?

Abanei a cabeça.

— Não tive coragem de ser mãe sozinha. E depois… o tempo passou.

Ele pousou a mão sobre a minha, hesitante.

— Desculpa, Leonor. Por tudo.

Senti vontade de gritar, de chorar, de lhe bater até sentir que toda aquela dor saía finalmente do meu peito. Mas limitei-me a fechar os olhos e respirar fundo.

— Não sei se consigo perdoar-te — admiti. — Mas talvez consiga perdoar-me por ter deixado que isto me definisse durante tanto tempo.

Miguel apertou-me a mão com força.

— Ainda temos tempo…

Levantei-me devagar, sentindo as pernas trémulas como se tivesse acabado de correr uma maratona emocional.

— Talvez sim… talvez não — respondi. — Preciso de tempo para perceber quem sou agora e o que quero daqui para a frente.

Caminhei até à porta da escola e parei por um instante. Olhei para trás e vi Miguel ainda sentado no banco, cabisbaixo, como um rapazinho apanhado em falta.

Ao sair para a rua principal da vila, cruzei-me com a minha prima Teresa à porta do café Central.

— Então? Encontraste alguém conhecido? — perguntou ela com aquele sorriso maroto.

Sorri-lhe tristemente.

— Encontrei fantasmas… e talvez uma oportunidade de fazer as pazes com o passado.

Ela abraçou-me com força.

— Às vezes é preciso voltar atrás para conseguir seguir em frente.

Durante os dias seguintes andei pela vila como uma estranha na minha própria história. Fui ao cemitério visitar os meus pais, sentei-me à beira-rio a ouvir as conversas das lavadeiras e comprei pão quente na padaria onde em tempos trabalhei nas férias grandes.

À noite escrevia cartas que nunca iria enviar: cartas ao Miguel adolescente, à minha mãe, à Leonor que fui e à mulher que sou agora.

No último dia antes de regressar a Lisboa, voltei à escola uma última vez. O banco estava vazio desta vez. Sentei-me ali sozinha e deixei finalmente as lágrimas caírem sem vergonha nem medo dos olhares alheios.

Pensei em tudo o que perdi… mas também em tudo o que ainda podia ganhar se tivesse coragem de me perdoar e abrir espaço para novas histórias.

Agora pergunto-me: quantos de nós vivem presos ao passado sem perceberem que só precisam de um regresso — por mais doloroso que seja — para se reencontrarem? Será possível reescrevermos o nosso próprio final?