Entre a Sopa e o Silêncio: O Peso das Diferenças
— Outra vez sopa de feijão? — perguntei, tentando esconder o desânimo na voz, mas a minha mãe percebeu. Ela pousou a concha com um suspiro e olhou-me nos olhos, cansada.
— Filha, é o que há. Amanhã talvez consiga trazer umas batatas do quintal da Dona Amélia.
Ouvimos então o barulho da porta da frente. O meu pai e o meu irmão mais velho, Miguel, tinham acabado de chegar. O cheiro a perfume caro misturou-se com o aroma humilde da nossa sopa. Eles traziam sacos de papel de uma pastelaria fina do centro da cidade. Vi, de relance, fatias de bolo de chocolate e caixas de pastéis de nata ainda mornos.
— Venham jantar connosco — sugeri, tentando soar natural, mas sentindo o nó na garganta apertar. O Miguel nem me olhou nos olhos.
— Não, obrigado. Já comemos — respondeu seco, puxando o pai pelo braço. Subiram as escadas apressados, fechando-se no quarto deles. Ficámos eu e a mãe, sozinhas à mesa.
O silêncio caiu pesado. Cada colherada parecia um lembrete do que não tínhamos. Lembrei-me dos tempos em que jantávamos todos juntos, antes do Miguel começar a trabalhar para o Sr. Álvaro, dono do supermercado novo da vila. Desde então, tudo mudou.
— Mãe, porque é que eles são assim agora? — perguntei baixinho.
Ela hesitou antes de responder:
— O dinheiro muda as pessoas, filha. E às vezes muda as famílias também.
A minha mãe sempre foi mulher de poucas palavras, mas naquele momento vi-lhe as lágrimas nos olhos. Não era só a sopa que era amarga.
Naquela noite, ouvi-os a rir no quarto deles. O som atravessava as paredes finas da nossa casa antiga. Fiquei acordada horas, a pensar em como tudo se tinha tornado tão desigual dentro das mesmas quatro paredes.
No dia seguinte, acordei cedo para ir à escola. A minha mochila era velha e os cadernos estavam gastos. Passei pelo quarto do Miguel e vi caixas vazias de comida cara no lixo. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
Na escola, a professora Dona Teresa perguntou:
— Inês, está tudo bem em casa?
Quase respondi que não, mas limitei-me a encolher os ombros. Não sabia explicar aquela divisão sem parecer ingrata ou dramática.
À tarde, quando voltei para casa, encontrei a minha mãe sentada à mesa com uma carta nas mãos. Tinha os olhos vermelhos.
— O que se passa?
Ela mostrou-me a carta: era um aviso do banco sobre a hipoteca da casa. Faltavam-nos dois meses para pagar uma prestação em atraso.
— O teu pai diz que não pode ajudar — murmurou ela, como se confessasse um crime.
Senti-me traída. Como podia ele recusar ajudar-nos quando gastava dinheiro em bolos caros? Fui ter com ele ao quintal.
— Pai, precisamos de ajuda para pagar a casa! — explodi.
Ele olhou-me com frieza:
— Eu já faço a minha parte. Se não fosse pelo Miguel e por mim, nem sopa havia nesta casa.
— Mas vocês comem coisas diferentes! Vivem como se fossem melhores do que nós!
Ele virou-me as costas sem responder.
Nessa noite, decidi confrontar o Miguel. Esperei até ouvir os passos dele no corredor e interceptei-o junto à porta do quarto.
— Porque é que não jantas connosco? Porque é que finges que não existimos?
Ele hesitou antes de responder:
— Não percebes… Eu trabalho duro. Quero coisas melhores para mim e para o pai. Vocês podiam tentar também.
— E a mãe? E eu? Não somos família?
Ele encolheu os ombros e entrou no quarto, fechando a porta na minha cara.
Os dias passaram assim: eu e a mãe na cozinha, eles dois no quarto deles. A comida nunca era partilhada; as conversas eram cada vez mais raras. A casa parecia dividida por uma linha invisível.
Uma tarde, ouvi a minha mãe chorar no quarto dela. Entrei sem bater e abracei-a forte.
— Não aguento mais isto — sussurrou ela. — Sinto-me invisível nesta casa.
Eu também me sentia assim: invisível, esquecida, como se não pertencesse ali.
No domingo seguinte, tentei mais uma vez juntar-nos à mesa. Preparei uma salada com as poucas coisas que tínhamos e pus a mesa para quatro.
— Hoje vamos jantar todos juntos — anunciei com determinação.
O Miguel apareceu à porta da cozinha e olhou para a mesa posta.
— Não tenho fome — disse apenas.
O meu pai limitou-se a sentar-se no sofá com o telemóvel na mão.
A minha mãe olhou para mim com tristeza e começou a arrumar tudo em silêncio.
Foi nesse momento que percebi: talvez nunca voltássemos a ser uma família unida. Talvez aquela divisão fosse irreversível.
Naquela noite escrevi no meu diário:
“Eles comem delicadezas enquanto nós ficamos com as sobras. Onde está a justiça nisto tudo?”
Os meses passaram e as coisas só pioraram. O banco acabou por tomar conta da casa e fomos obrigadas a mudar-nos para um apartamento pequeno nos arredores da vila. O meu pai ficou com o Miguel; eu e a mãe fomos sozinhas para o novo lugar.
No primeiro jantar na nova casa, comemos sopa outra vez. Mas desta vez havia algo diferente: um silêncio mais leve entre nós duas. Olhámos uma para a outra e sorrimos tristemente.
— Pelo menos estamos juntas — disse ela.
Eu assenti, sentindo uma mistura de tristeza e alívio.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que alguma vez poderíamos ter feito diferente? Será que o dinheiro justifica tanta distância? E vocês… já sentiram esta injustiça dentro da vossa própria família?