Entre o Amor e a Inveja: O Preço de Ter Mais
— Não podes ser tão egoísta, Mariana! — A voz da minha mãe ecoou pela sala, carregada de uma raiva que eu nunca lhe conhecera. — A tua cunhada está grávida, precisa mais do apartamento do que tu!
Fiquei ali, parada, com as chaves do meu T2 novo a escaldarem-me na mão. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o perfume barato da minha mãe, e eu sentia-me sufocar. O olhar da Andreia, a minha cunhada, era frio como gelo. Ela nem sequer tentava disfarçar o desprezo.
— Mariana, tu nem tens filhos. Para quê tanto espaço? — Ela cruzou os braços, barriga já saliente, e lançou-me aquele sorriso cínico que sempre me irritou.
A minha cabeça fervilhava. Lembrei-me de todas as vezes em que ouvi sussurros na família: “A Mariana pensa que é melhor do que nós só porque foi para a universidade.” “Ela nunca vai entender o que é lutar a sério.” Mas eu lutei. Lutei muito. Trabalhei em três cafés ao mesmo tempo para pagar as propinas. Dormi em quartos alugados, com paredes tão finas que ouvia os vizinhos a discutir todas as noites.
Agora, finalmente, tinha conseguido comprar o meu próprio apartamento em Lisboa. Pequeno, mas só meu. E de repente, era como se tudo aquilo não tivesse valor nenhum.
— Mãe, eu trabalhei tanto para isto… — tentei argumentar, mas ela cortou-me logo.
— E a Andreia não trabalha? O teu irmão está desempregado! Eles vão ser pais! — Os olhos dela brilhavam de lágrimas, mas eu sabia que era mais raiva do que tristeza.
Olhei para o chão. Senti uma vergonha estranha, como se fosse errado ter conseguido algo na vida. O meu irmão, o Rui, estava sentado no sofá, calado. Não me olhava nos olhos. Sempre fomos próximos em crianças, mas desde que casei e comecei a subir na vida, afastámo-nos. Ele nunca me perdoou por ter saído da terra e não olhar para trás.
— Mariana, tu sabes que a Andreia não tem para onde ir — insistiu a minha mãe. — O senhorio deles vai aumentar a renda outra vez. Eles não têm ninguém…
— E eu? — perguntei, quase num sussurro. — Eu também sou tua filha.
O silêncio caiu pesado. A Andreia revirou os olhos.
— Tu tens tudo — disse ela. — Sempre tiveste. Só te pedimos um gesto de família.
Lembrei-me do Natal passado, quando cheguei com um presente para cada sobrinho e ouvi a Andreia comentar com a minha mãe: “Ela gosta é de mostrar que tem dinheiro.” Nunca foi sobre mostrar nada. Sempre quis apenas sentir-me parte de alguma coisa.
— Mariana — a voz da minha mãe suavizou-se um pouco —, pensa bem. A família é tudo o que temos.
Saí dali antes que as lágrimas me traíssem. Caminhei pelas ruas do bairro antigo onde cresci, as pedras gastas pelas histórias de gerações. Senti-me pequena outra vez, como quando era criança e ouvia os adultos dizerem que eu era “esquisita” por gostar de ler em vez de brincar na rua.
No dia seguinte, o telefone tocou cedo.
— Mariana? — Era o Rui. A voz dele estava rouca. — Desculpa pelo que aconteceu ontem… A mãe está só preocupada.
Esperei que dissesse mais alguma coisa, mas ficou em silêncio.
— Rui… achas justo? Achas mesmo justo eu ter de dar o meu apartamento?
Ele suspirou.
— Não sei… Só sei que estou cansado de ver a Andreia chorar todas as noites por causa da renda. E tu… tu pareces tão distante de nós todos.
— Porque sempre me fizeram sentir assim! — explodi. — Como se fosse errado querer mais!
Ele ficou calado durante tanto tempo que pensei que tinha desligado.
— Talvez tenhas razão… Mas agora não sei como sair disto.
Desliguei sem saber se sentia raiva ou pena dele.
Durante dias, evitei todos os telefonemas da família. No trabalho, fingia sorrisos enquanto por dentro sentia um buraco negro a crescer. Os colegas falavam das férias no Algarve e dos filhos na escola privada; eu só conseguia pensar em como era possível sentir-me tão sozinha tendo uma família inteira à minha volta.
Uma noite, sentei-me no chão do meu novo apartamento vazio. Olhei para as paredes brancas e imaginei-as cheias de quadros, livros e memórias minhas. E depois imaginei-as cheias de brinquedos e gritos de crianças que não eram minhas.
O telefone vibrou outra vez. Era uma mensagem da minha mãe: “A Andreia está muito mal, Mariana. Não vais mesmo ajudar?” Seguia-se uma foto da Andreia a chorar.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que era sempre eu a ceder? Porque é que ninguém via o quanto custava chegar aqui?
No dia seguinte, fui visitar a minha avó paterna. Ela sempre foi a única a entender-me sem julgar.
— Sabes, Mariana — disse ela enquanto me servia chá —, às vezes quem mais dá é quem menos recebe agradecimento. Mas se deres tudo agora… o que te resta para ti?
Chorei no colo dela como quando era criança.
Na semana seguinte, convoquei todos lá em casa. A Andreia entrou primeiro, inchada dos olhos de tanto chorar. O Rui vinha atrás dela, cabisbaixo. A minha mãe olhava para mim como se esperasse um milagre.
— Eu pensei muito — comecei, tentando manter a voz firme — e decidi que não vou dar o apartamento à Andreia.
O silêncio foi ensurdecedor.
— Mas posso ajudar-vos com a renda durante uns meses até encontrarem uma solução melhor — acrescentei rapidamente.
A Andreia levantou-se num salto:
— Isso não chega! Tu és uma egoísta! Achas-te melhor do que nós!
O Rui tentou acalmá-la, mas ela saiu porta fora aos gritos.
A minha mãe olhou para mim com desilusão nos olhos:
— Nunca pensei ver-te assim…
Fiquei ali sozinha depois de todos saírem. Senti-me vazia e culpada, mas também estranhamente aliviada por finalmente ter defendido aquilo que conquistei.
Hoje escrevo esta história sentada no sofá do meu pequeno apartamento. Ainda dói saber que talvez tenha perdido parte da minha família por isto. Mas pergunto-me: será justo sacrificar tudo o que sou e tudo o que conquistei só porque esperam isso de mim? Até onde vai o dever familiar? E vocês… já passaram por algo assim?