O Jardim Invisível: Entre o Amor e a Responsabilidade

— Não podes simplesmente ir embora outra vez, Rui! — gritei, a voz embargada, enquanto ele atirava as chaves para cima da mesa da cozinha. Os olhos dele, sempre fugidios, não me encaravam. — Eles são teus filhos!

O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. O relógio da parede marcava oito da noite, mas parecia madrugada dentro de mim. O cheiro do arroz queimado misturava-se com a tensão no ar. Rui passou por mim sem dizer palavra, pegou no casaco e saiu, deixando atrás de si o eco das suas ausências.

Fiquei ali, parada, com as mãos trémulas e o coração aos pulos. Os miúdos — a Matilde de oito anos e o Tomás de cinco — estavam na sala, colados à televisão, fingindo não ouvir. Mas eu sabia que ouviam tudo. Sabiam demais para a idade que tinham.

Sentei-me à mesa, enterrei o rosto nas mãos e deixei-me chorar baixinho. Não era a primeira vez que Rui desaparecia. Desde que a mãe das crianças morrera num acidente de carro na EN2, há dois anos, ele nunca mais foi o mesmo. Primeiro vieram as noites fora de casa, depois as dívidas, depois o álcool. Agora, restava-lhes apenas eu.

Lembro-me do dia em que trouxe as crianças para minha casa. A minha mãe já não estava cá para ajudar — partira há meses, vencida pelo cancro. A casa parecia demasiado grande e vazia para mim sozinha. Quando Rui me apareceu à porta com os miúdos pela mão e os olhos vermelhos de ressaca, não hesitei. Disse apenas:

— Fiquem.

Mas nunca pensei que seria tão difícil.

Naquela noite, depois de deitar a Matilde e o Tomás, sentei-me no sofá com uma manta sobre os joelhos. O telefone tocou — era a minha tia Lurdes.

— Filha, estás bem? — perguntou ela, sempre preocupada.

— Estou… mais ou menos. O Rui saiu outra vez.

— Tens de pensar em ti também. Não podes carregar o mundo às costas.

Suspirei. Como explicar-lhe que não era uma questão de escolha? Que aquelas crianças eram tudo o que restava da nossa família? Que eu própria sentia um vazio tão grande que só conseguia preenchê-lo cuidando deles?

Os dias seguintes foram uma sucessão de pequenas batalhas: acordar cedo para preparar pequenos-almoços apressados, convencer a Matilde a vestir-se sozinha, acalmar os pesadelos do Tomás durante a noite. No supermercado, contava as moedas antes de passar na caixa. No trabalho — sou auxiliar numa escola primária — pedia para sair mais cedo sempre que havia febres ou reuniões inesperadas.

Uma tarde, ao buscar a Matilde à escola, fui chamada pela professora.

— Dona Sofia, posso falar consigo um minuto?

O coração apertou-se-me no peito.

— A Matilde anda muito calada. Não brinca com os outros meninos como antes. Perguntou-me se o pai dela ainda gosta dela…

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como podia o Rui ser tão egoísta? Como podia eu preencher aquele vazio?

Em casa, tentei conversar com a Matilde.

— Filha, queres falar comigo?

Ela encolheu os ombros e continuou a desenhar.

— O pai vai voltar? — perguntou de repente.

Engoli em seco.

— Eu espero que sim. Mas sabes que eu estou aqui para ti e para o Tomás, não sabes?

Ela olhou-me com aqueles olhos enormes e tristes.

— Mas tu não és a minha mãe…

As palavras ficaram suspensas no ar como uma sentença. Senti-as como uma facada. Não era mãe dela — nunca seria — mas era tudo o que ela tinha agora.

Nessa noite, depois de adormecerem, fui ao jardim das traseiras. Era ali que a minha mãe passava horas a cuidar das roseiras e das hortênsias. Agora estava tudo ao abandono: ervas daninhas por todo o lado, flores murchas, terra seca. Sentei-me no banco de pedra e chorei até não ter mais lágrimas.

Lembrei-me das palavras da minha mãe: “Sofia, um jardim precisa de cuidado todos os dias. Se deixares de olhar por ele, torna-se invisível aos poucos.” Era assim que me sentia — invisível. E as crianças também.

Os meses passaram devagar. O Rui aparecia esporadicamente: às vezes para pedir dinheiro, outras vezes para prometer que ia mudar. Nunca mudava. Uma noite chegou bêbado e gritou comigo à frente dos miúdos.

— Achas-te melhor do que eu? Só porque tens um emprego miserável e vives nesta casa velha?

A Matilde agarrou-se às minhas pernas a tremer. O Tomás chorava baixinho no canto da sala.

— Sai daqui! — gritei-lhe eu pela primeira vez na vida. — Se não consegues ser pai, ao menos não sejas um peso!

Ele saiu aos tropeções e nunca mais voltou.

A partir desse dia, percebi que estava sozinha nisto. Tive de pedir ajuda à Segurança Social para regularizar a guarda das crianças. Vieram assistentes sociais à casa, fizeram perguntas invasivas sobre rendimentos e rotinas. Senti-me julgada por estranhos que nada sabiam do nosso sofrimento.

Houve dias em que pensei em desistir. Em fugir dali como o Rui fugira de nós todos. Mas depois olhava para a Matilde e para o Tomás — tão frágeis e perdidos — e sabia que não podia deixá-los.

Comecei a cuidar do jardim outra vez. Aos poucos, fui arrancando as ervas daninhas, regando as plantas secas, plantando novas flores com as crianças ao meu lado. Era uma forma de lhes mostrar que tudo pode renascer se houver amor e paciência.

A Matilde começou a sorrir mais vezes; o Tomás já dormia sem pesadelos quase todas as noites. Aos poucos fomos criando as nossas próprias rotinas: bolos ao domingo, filmes nas noites de chuva, passeios ao parque nas manhãs de sol.

Mas havia sempre uma sombra pairando sobre nós: a ausência do Rui, as perguntas sem resposta das crianças, o medo de não ser suficiente.

Um dia recebi uma carta do tribunal: o Rui tinha sido detido por roubo em Lisboa; pediam-me para testemunhar sobre as condições das crianças. Senti uma mistura de alívio e tristeza — alívio por saber onde ele estava; tristeza por perceber que talvez nunca voltasse a ser o irmão que conheci.

No tribunal olhei-o nos olhos pela primeira vez em meses.

— Sofia… desculpa — murmurou ele antes da audiência começar.

Não respondi. Não sabia se ainda tinha perdão dentro de mim.

Voltámos para casa nesse dia com um peso novo sobre os ombros — mas também com uma certeza: éramos só nós três agora. E talvez isso bastasse.

Hoje olho para o jardim florido e penso em tudo o que perdemos — mas também no que conseguimos construir juntos. Será isto ser família? Seremos suficientes uns para os outros? Ou será que há feridas que nunca cicatrizam?

Às vezes pergunto-me: quantos jardins invisíveis existem à nossa volta? E quantos deles terão alguém disposto a cuidar?