À Sombra dos Segredos de Família: O Telefonema que Mudou a Vida da Minha Filha
— Mãe, quem é ao telefone? — ouvi a voz trémula da Inês vinda do corredor, enquanto eu apertava o telemóvel com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Do outro lado, uma voz desconhecida, mas estranhamente familiar, sussurrava: — Precisa de saber a verdade sobre o seu marido. Ele não é quem pensa.
O relógio da cozinha marcava 19h47. O cheiro do arroz de tomate queimado misturava-se com o frio húmido que entrava pela janela mal fechada. O meu coração batia tão alto que temi que a Inês ouvisse. — Quem é você? — perguntei, tentando manter a voz firme. — Isso não importa agora. Olhe para a sua filha. Ela merece saber quem é o pai.
Desliguei. Senti as pernas fraquejarem. A Inês, com os olhos grandes e castanhos, fitava-me à espera de uma resposta. — Era engano, filha — menti, forçando um sorriso. Mas sabia que aquela chamada era o início do fim da vida que eu conhecia.
O João chegou tarde nessa noite, como sempre. O cheiro a tabaco entranhado na roupa denunciava-lhe as escapadelas. — O jantar está frio — disse-lhe, tentando soar indiferente. Ele nem respondeu. Sentou-se à mesa, ligou a televisão e ignorou-nos às duas. A Inês tentou contar-lhe sobre o teste de matemática, mas ele limitou-se a acenar com a cabeça, sem tirar os olhos do ecrã.
A minha mãe ligou pouco depois das dez. — Ainda estás acordada? — perguntou, com aquele tom seco de sempre. — Estou, mãe. Precisas de alguma coisa? — Não devias deixar o João chegar tão tarde. Os homens cansam-se das mulheres que só reclamam.
Engoli em seco. Desde pequena que aprendi a calar-me perante ela. Nunca foi de abraços ou palavras doces; o amor dela era feito de críticas e silêncios longos. — Boa noite, mãe.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o tecto, a pensar na voz ao telefone e no olhar triste da Inês. O João ressonava ao meu lado, alheio ao turbilhão dentro de mim.
Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas: acordar cedo, preparar pequenos-almoços apressados, correr para o autocarro 726 até ao escritório cinzento onde trabalhava como administrativa. A Inês ia para a escola sozinha; o João saía antes de nós e voltava sempre depois do jantar.
Uma tarde, ao regressar a casa, encontrei uma mulher à porta do prédio. Tinha cabelo curto e grisalho, olhos verdes e um casaco vermelho puído. — Desculpe incomodar — disse ela, olhando-me nos olhos como se me conhecesse há anos — mas preciso mesmo de falar consigo.
Hesitei. — Sobre o quê?
— Sobre o João. E sobre a sua filha.
O chão fugiu-me dos pés. Olhei em volta, à procura de vizinhos curiosos. — Não sei quem é nem do que está a falar.
Ela suspirou. — O João tem outra família. Uma filha da idade da sua Inês. Eu sou a mãe dela.
Senti o sangue gelar-me nas veias. Quis gritar, chorar, fugir dali. Mas fiquei imóvel, presa entre o medo e a raiva.
— Está enganada — murmurei, mas ela abanou a cabeça.
— Não estou. E não vim aqui para destruir nada. Só acho que as meninas têm direito de saber uma da outra.
Fechei a porta com força assim que entrei em casa. A Inês estava sentada no sofá, a desenhar no caderno velho que herdara do avô. Olhou para mim com aquele olhar atento de quem percebe mais do que devia.
— Mãe, estás bem?
Sentei-me ao lado dela e abracei-a com força. Senti-lhe o cheiro doce do cabelo e prometi em silêncio protegê-la de tudo aquilo.
Nessa noite confrontei o João. Esperei que ele pousasse o casaco e lhe atirei as palavras como pedras:
— Quem é a Teresa? E porquê é que tem uma filha da idade da Inês?
Ele ficou pálido, depois vermelho de raiva.
— Andas a ouvir mexericos? Não inventes histórias!
— Ela veio cá! Falou comigo! Disse-me tudo!
O João levantou-se tão bruscamente que quase derrubou a cadeira.
— Não tens nada que te meter na minha vida! Se queres saber tanto, vai perguntar à tua mãe porque é que nunca gostou de mim!
A Inês apareceu à porta da cozinha, assustada.
— O que se passa?
— Nada, filha — disse ele, tentando sorrir — vai para o quarto.
Mas ela ficou ali, imóvel, os olhos cheios de lágrimas.
Nessa noite dormi no sofá. O João saiu cedo e não voltou durante dois dias.
A minha mãe apareceu sem avisar na manhã seguinte.
— Ouvi dizer que andas metida em confusões — disse ela, sem sequer me cumprimentar.
— O João tem outra família — respondi-lhe, já sem forças para fingir.
Ela encolheu os ombros.
— Os homens são assim desde sempre. Aprende a viver com isso.
Olhei para ela com incredulidade. Como podia ser tão fria? Como podia aceitar aquilo como se fosse normal?
— Eu não quero isso para mim nem para a Inês!
Ela abanou a cabeça e saiu sem dizer mais nada.
Durante dias vivi num nevoeiro de tristeza e raiva. A Inês começou a ter insónias; acordava a meio da noite com pesadelos e vinha enroscar-se junto a mim no sofá.
Uma tarde recebi uma mensagem da Teresa: “A minha filha gostava de conhecer a Inês.” Hesitei durante horas antes de responder: “Talvez seja melhor assim.”
Marcámos encontro num parque perto de casa. As duas meninas olharam-se em silêncio durante minutos intermináveis até que a filha da Teresa sorriu e disse:
— Gosto do teu casaco.
A Inês sorriu também e começaram a conversar como se fossem amigas há anos.
Fiquei ali sentada ao lado da Teresa, ambas em silêncio, partilhando uma dor antiga e um medo novo pelo futuro das nossas filhas.
O João nunca mais voltou para casa. Mandou uma mensagem curta: “Preciso de tempo.”
A minha mãe deixou de ligar; talvez por vergonha ou por orgulho ferido.
Fiquei sozinha com a Inês e uma vida nova pela frente: mais difícil, mas finalmente livre dos segredos e das mentiras.
Às vezes pergunto-me se fiz bem em abrir aquela porta à Teresa; se devia ter protegido mais a Inês ou se foi melhor mostrar-lhe desde cedo que as famílias são feitas de escolhas difíceis e verdades dolorosas.
E vocês? O que fariam no meu lugar? Será possível reconstruir uma família sobre os escombros dos segredos?