Trinta Anos Juntos, Depois o Vazio: O Meu Mundo Desabou

— Vais mesmo sair por essa porta, António? — perguntei, com a voz a tremer, enquanto ele enfiava a última camisa na mala. O silêncio dele era ensurdecedor. O relógio da cozinha marcava 19h47, e eu sabia que aquela noite nunca mais seria igual.

— Não tornes isto mais difícil, Maria — respondeu ele, sem me olhar nos olhos. — Já está decidido.

Senti o chão fugir-me dos pés. Trinta anos juntos. Trinta Natais, trinta verões na Nazaré, trinta discussões sobre quem deixava sempre a luz da casa de banho acesa. E agora, nada. O António ia embora, e eu ficava ali, rodeada pelas paredes frias da nossa casa em Almada.

Quando a porta se fechou atrás dele, o silêncio foi tão pesado que quase me sufocou. Sentei-me no sofá e chorei como não chorava desde que perdi o meu pai. Oiço ainda o eco das palavras do António: “Já está decidido.” Decidido por quem? Por ele? Por ela? Por mim nunca estaria.

A primeira noite foi um tormento. O cheiro dele ainda estava nos lençóis. A escova de dentes azul continuava ao lado da minha. Mas ele não voltaria. Liguei à minha irmã, a Teresa, mas ela só disse:

— Maria, tens de ser forte. Os homens são todos iguais.

Mas o António não era igual aos outros… ou era? Comecei a rever cada momento dos últimos anos: as discussões sobre dinheiro, as ausências dele ao jantar, as mensagens que ele recebia e nunca explicava. Como é que não vi os sinais? Ou vi e preferi ignorar?

Os meus filhos, o João e a Inês, ficaram em choque quando lhes contei. O João gritou comigo:

— Como é que deixaste isto acontecer, mãe? — como se eu tivesse tido escolha.

A Inês chorou comigo ao telefone:

— Ele vai arrepender-se, mãe. Vais ver.

Mas eu sabia que não havia volta atrás. O António estava apaixonado por outra mulher — a Carla, uma colega do escritório dele em Lisboa. Uma mulher dez anos mais nova, com um sorriso fácil e uma gargalhada irritante que eu já ouvira numa festa de Natal da empresa.

Começaram as noites sem sono. Levantava-me às três da manhã para beber água e ficava à janela a olhar para as luzes da ponte 25 de Abril. Perguntava-me onde estaria ele agora. Com ela? A rir-se do meu sofrimento?

Os vizinhos começaram a cochichar:

— Coitada da Maria…

— Ele já andava com aquela há meses…

Senti vergonha de sair à rua. No supermercado, evitava os olhares das outras mulheres do bairro. Sentia-me velha, usada, descartada como um móvel antigo.

A minha mãe ligou-me todos os dias:

— Mariazinha, tens de reagir. Não podes deixar que isto te destrua.

Mas como se reage quando metade da tua vida desaparece de repente? Comecei a perder peso. A comida não tinha sabor. O café sabia a lágrimas.

Um dia, a Inês apareceu em minha casa com uma mala cheia de roupa.

— Vou ficar contigo uns dias — disse ela, abraçando-me com força.

Foi bom ter companhia. Ríamos das novelas à noite e chorávamos juntas quando dávamos por nós a falar do António. A Inês tentava animar-me:

— Mãe, devias inscrever-te num curso de pintura ou assim…

Mas eu não tinha vontade para nada. Só queria dormir e esquecer.

O João afastou-se. Culpa? Raiva? Não sei. Só sei que deixou de me ligar todos os dias como antes.

As semanas passaram devagar. Um dia acordei e percebi que já não chorava tanto. Comecei a arrumar as coisas do António: camisas velhas, livros de futebol, fotografias de férias em Lagos. Cada objeto era uma facada no peito, mas também um passo para a frente.

Numa tarde chuvosa de março, recebi uma mensagem dele:

— Preciso de vir buscar uns documentos.

O coração disparou. Quando ele entrou em casa, parecia um estranho: mais magro, mais velho.

— Estás bem? — perguntou ele, sem convicção.

— Estou viva — respondi.

Ele hesitou antes de sair:

— Espero que um dia me perdoes.

Fechei a porta sem responder. Não sabia se algum dia conseguiria perdoar.

Comecei a sair mais de casa. Fui ao café com a Teresa e rimos das nossas desgraças amorosas. Inscrevi-me num grupo de caminhadas no Parque da Paz. Conheci pessoas novas: a Dona Rosa, viúva há vinte anos; o Sr. Manuel, reformado dos CTT; a Filipa, divorciada como eu.

Aos poucos fui recuperando alguma alegria. Um dia olhei-me ao espelho e vi uma mulher diferente: mais magra, com olheiras fundas mas com um brilho novo nos olhos. Sobrevivi ao abandono.

O João voltou a ligar-me:

— Desculpa ter estado ausente, mãe…

Perdoei-o logo ali. Ele também estava magoado.

A Inês arranjou namorado e voltou para casa dela. Fiquei sozinha outra vez, mas já não sentia tanto medo do silêncio.

Numa manhã de domingo fui à missa e rezei pelo António — não para que voltasse, mas para que encontrasse paz (e eu também). Saí da igreja com o coração mais leve.

Hoje olho para trás e vejo tudo como um filme antigo: as discussões, as lágrimas, os silêncios pesados… Mas também vejo uma mulher que renasceu das cinzas.

Pergunto-me muitas vezes: será que algum dia voltarei a confiar em alguém? Será possível amar depois de tanta dor? Talvez sim… talvez não… Mas sei que sou mais forte do que pensava.

E vocês? Já sentiram o chão fugir-vos dos pés? Como é que se volta a acreditar depois de perder tudo?