Deixei-te Ir Para Me Encontrar: A Minha História de Infertilidade, Divórcio e Renascimento

— Não posso mais, Sofia. Não aguento ver-te assim todos os dias, a chorar, a desesperar. Isto está a destruir-nos.

As palavras do Rui ecoaram na sala fria, onde as cortinas pesadas mal deixavam entrar a luz de janeiro. Senti o chão fugir-me dos pés. O silêncio que se seguiu foi mais cortante do que qualquer grito. Olhei para ele, para o homem com quem partilhei dez anos de vida, e vi apenas cansaço nos seus olhos castanhos. Não havia raiva, só uma tristeza resignada.

— Então é isso? Vais embora? Agora?

A minha voz saiu rouca, quase irreconhecível. Ele baixou a cabeça, evitando o meu olhar.

— Já não sei como te ajudar. Já não sei como me ajudar a mim próprio.

A porta fechou-se atrás dele com um estalido seco. Fiquei ali, sentada no sofá, a olhar para as paredes cheias de fotografias de viagens, aniversários, natais em família. Tudo parecia tão distante, como se pertencesse a outra pessoa.

O diagnóstico de infertilidade tinha sido um murro no estômago. Durante anos, tentei convencer-me de que era só uma questão de tempo. Cada ciclo era uma esperança renovada e uma desilusão ainda maior. As consultas no Hospital de Santa Maria tornaram-se rotina: exames, injeções hormonais, ecografias frias e impessoais. O corpo transformou-se num campo de batalha silencioso.

A minha mãe ligava todos os domingos:

— Então, filha? Há novidades?

O tom dela era sempre doce, mas eu sentia o peso da expectativa. O meu pai limitava-se a um aceno de cabeça quando nos víamos ao almoço de família. A minha irmã mais nova, a Mariana, já tinha dois filhos e uma barriga sempre pronta para mais um. Eu sorria para os meus sobrinhos enquanto por dentro me desfazia em pedaços.

O Rui tentou ser forte. No início acompanhava-me a todas as consultas. Segurava-me a mão durante os exames mais dolorosos. Mas com o tempo foi-se afastando. As conversas à mesa tornaram-se monossilábicas. O desejo de ter um filho transformou-se numa obsessão que nos afastava cada vez mais.

Lembro-me da noite em que discutimos pela primeira vez a sério:

— Não percebes que isto não é só sobre ti? Eu também estou a sofrer!

— Mas tu não és tu que levas com as injeções! Não és tu que tens de ouvir o médico dizer que o teu corpo falhou!

Ele saiu porta fora e só voltou de madrugada. A partir desse dia, algo se partiu entre nós.

Quando ele finalmente me deixou, senti-me vazia. Passei dias sem sair da cama. A minha mãe apareceu lá em casa com sopa e bolos caseiros.

— Sofia, tens de reagir. Não podes deixar que isto te destrua.

Mas eu não queria ouvir ninguém. O telefone tocava e eu deixava tocar até se calar. Os amigos tentavam marcar cafés, mas eu inventava desculpas.

Foi a Mariana quem me obrigou a sair de casa:

— Vens comigo buscar os miúdos à escola e depois vamos lanchar ao parque.

No parque, sentei-me num banco enquanto ela brincava com os filhos. Vi mães e pais a correr atrás das crianças, ouvi risos e gritos felizes. Senti inveja, raiva, tristeza — tudo ao mesmo tempo.

— Sabes — disse-me ela baixinho — eu sei que parece fácil para mim, mas também tenho medo todos os dias. Medo de não ser boa mãe, medo de falhar com eles. Tu não és menos mulher por não teres filhos.

Chorei ali mesmo, no meio do parque infantil.

Os meses passaram devagar. Voltei ao trabalho no escritório de advogados em Lisboa. Os colegas olhavam-me com pena disfarçada. A Marta, da contabilidade, estava grávida e falava disso todos os dias à hora do almoço.

Uma tarde, depois de uma reunião interminável sobre um caso de heranças familiares — ironia das ironias — fechei-me na casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas.

Foi aí que decidi procurar ajuda profissional. Marquei consulta com uma psicóloga chamada Dra. Teresa. Nas primeiras sessões mal conseguia falar sem soluçar.

— Sofia, o luto pela maternidade é real — disse-me ela certa vez — mas também é possível encontrar sentido para além desse sonho.

Comecei a escrever um diário. Escrevia cartas ao Rui que nunca enviei. Escrevia à criança que nunca tive.

Numa dessas noites solitárias, abri uma caixa antiga cheia de fotografias da infância: eu e a Mariana na praia da Nazaré, os meus pais jovens e sorridentes, o cão Bobby a correr atrás de nós no quintal dos avós em Santarém.

Pela primeira vez em muito tempo senti saudades da Sofia que fui antes de tudo isto: alegre, sonhadora, cheia de planos para o futuro.

Aos poucos comecei a sair mais. Aceitei convites para jantares com amigos antigos. Fui ao cinema sozinha pela primeira vez na vida e ri-me do nervosismo infantil que senti ao comprar o bilhete.

Um dia recebi uma mensagem inesperada do Rui:

— Podemos falar?

O coração disparou-me no peito. Encontrámo-nos num café discreto perto do Jardim da Estrela. Ele estava diferente: mais magro, mais sério.

— Desculpa por ter fugido — disse ele — Não soube lidar com tudo aquilo.

— Eu também não — respondi — Mas sabes? Acho que era preciso perdermos tudo para percebermos quem somos sem o outro.

Conversámos durante horas sobre tudo menos sobre filhos ou tratamentos ou mágoas antigas. No fim abraçámo-nos como dois velhos amigos que sobreviveram à mesma tempestade.

Não voltámos a ser um casal. Mas perdoámo-nos mutuamente.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde então. Ainda sinto tristeza às vezes — sobretudo quando vejo famílias felizes nos jardins ou quando alguém me pergunta se tenho filhos — mas já não me sinto incompleta.

Encontrei novas formas de cuidar: faço voluntariado numa associação de apoio a crianças em risco; sou a tia preferida dos meus sobrinhos; aprendi a cuidar melhor de mim própria.

A minha mãe diz agora:

— Tenho orgulho em ti, filha. És muito mais forte do que pensas.

E eu acredito nela.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao sonho da maternidade sem perceberem que também podem renascer das cinzas? Será preciso perder tudo para nos encontrarmos verdadeiramente? E vocês… já tiveram de deixar alguém ir para finalmente se encontrarem?