Quando os Filhos do António Descobriram que Vivíamos Juntos: O Preço da Minha Felicidade
— Não acredito que fizeste isto, pai! — gritou a Joana, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto o irmão, o Miguel, se mantinha calado, mas com o maxilar cerrado. Eu estava ali, parada no corredor, a ouvir cada palavra como se fossem pedras atiradas contra mim. António tentou acalmar a filha, mas ela afastou-se dele com um gesto brusco.
Naquele momento, percebi que a minha presença naquela casa era uma ferida aberta para eles. Tinha-me apaixonado por António de uma forma que nunca pensei ser possível aos quarenta e seis anos. Conhecemo-nos numa tarde de inverno, na fila do supermercado em Setúbal. Ele deixou cair uma caixa de ovos, eu ajudei-o a apanhar e, entre risos nervosos, trocámos números de telefone. Em poucas semanas, já não conseguíamos passar um dia sem falar.
O António era viúvo há três anos. Falava da mulher com respeito e saudade, mas também com uma certa resignação. Disse-me logo que tinha dois filhos adultos: a Joana, de vinte e quatro anos, e o Miguel, de vinte e dois. Eu também tinha uma filha, a Inês, mas ela já vivia em Lisboa com o namorado e raramente vinha a casa.
Quando decidimos viver juntos, achei que seria difícil, mas nunca imaginei o que estava para vir. A Joana descobriu por acaso — viu-me sair do quarto do pai numa manhã de sábado. O choque foi imediato. No início, tentou ignorar-me, mas depois começaram as discussões. O Miguel era mais reservado, mas sentia-se no ar o seu desconforto.
— Não tens vergonha? — atirou-me Joana uma noite, quando António saiu para comprar pão. — A minha mãe morreu há pouco tempo e tu já estás aqui como se fosses dona disto tudo.
Senti um nó na garganta. Quis explicar-lhe que não queria substituir ninguém, que só queria amar o pai dela e ser feliz. Mas as palavras não saíam. Limitei-me a baixar os olhos.
Os dias seguintes foram um inferno. Pequenas coisas tornaram-se grandes batalhas: quem cozinhava ao jantar, quem usava a máquina de lavar primeiro, até quem podia ver televisão na sala. O António tentava mediar, mas acabava sempre a ceder aos filhos.
Uma noite, ouvi-os a discutir na cozinha.
— Não percebes que ela está a tentar ocupar o lugar da mãe? — dizia Joana.
— A Maria não quer isso! — respondeu António, exasperado.
— Então porque é que ela está sempre aqui? Porque é que não pode ter a própria casa?
Senti-me intrusa na minha própria vida. Comecei a sair mais cedo para o trabalho e a chegar mais tarde. Evitava os pequenos-almoços em família e passava horas fechada no quarto. O António tentava animar-me:
— Dá-lhes tempo, Maria. Eles vão perceber que tu não és uma ameaça.
Mas o tempo só parecia piorar tudo. A Joana começou a trazer amigos para casa sem avisar e fazia questão de falar alto sobre como “certas pessoas” não pertenciam ali. O Miguel começou a sair cada vez mais e quase não falava comigo.
Uma tarde de domingo, decidi fazer um bolo de laranja — era a receita preferida do António. Quando coloquei o bolo na mesa, Joana olhou para mim com desdém:
— A minha mãe fazia melhor.
O António ficou tenso. Eu sorri, mas por dentro sentia-me despedaçada.
A situação tornou-se insustentável quando começaram as acusações veladas:
— Aposto que estás aqui pelo dinheiro do meu pai — disse Miguel num jantar em que António se atrasou no trabalho.
— Não digas disparates — tentei responder calmamente.
— Não é disparate nenhum! Nem sabes nada sobre nós!
Nessa noite chorei sozinha no quarto. Liguei à minha filha Inês:
— Mãe, tu tens direito a ser feliz — disse ela. — Mas também tens direito a não te deixares magoar.
Comecei a pensar se não seria melhor ir embora. Mas amava António. Ele era o meu porto seguro depois de anos sozinha. E eu queria acreditar que era possível construir uma nova família.
Certa noite, António entrou no quarto e sentou-se ao meu lado na cama.
— Não sei o que fazer — confessou ele. — Sinto-me dividido entre ti e os meus filhos.
— Eu não quero que escolhas — respondi-lhe baixinho. — Só queria ser aceite.
Ele abraçou-me forte e chorou pela primeira vez desde que nos conhecemos.
No dia seguinte, decidi falar com Joana e Miguel. Preparei um pequeno-almoço especial e esperei-os na cozinha.
— Sei que isto é difícil para vocês — comecei eu, com voz trémula. — Mas eu não vim aqui para substituir ninguém. Só quero fazer parte da vossa vida… se me deixarem.
Joana olhou para mim com raiva:
— Nunca vais ser a nossa mãe!
— Eu sei… — respondi com lágrimas nos olhos. — Mas posso ser vossa amiga?
Miguel levantou-se sem dizer nada e saiu porta fora. Joana ficou ali sentada, em silêncio.
Os dias passaram e nada mudou realmente. Os olhares continuavam frios, as palavras afiadas como facas. António começou a ficar mais ausente; percebia-se o cansaço no seu rosto.
Uma noite, depois de mais uma discussão por causa do comando da televisão, fechei-me na casa de banho e olhei-me ao espelho:
“Será que vale a pena lutar por isto? Será que algum dia serei aceite? Ou estou apenas a enganar-me com sonhos de felicidade?”
A verdade é que continuo aqui, todos os dias à espera de um sorriso sincero ou de um gesto de aceitação. Não sei quanto tempo mais aguento esta guerra silenciosa… Mas pergunto-vos: até onde devemos ir pelo amor? E será que alguma vez conseguimos realmente pertencer a uma família que não é nossa?