Quando o meu marido me obrigou a escolher entre a minha mãe e ele: a história de Magda de Braga

— Magda, não aguento mais esta situação! — gritou o Rui, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro do chá de camomila que preparava para a minha mãe. — Ou ela vai embora, ou eu vou!

Fiquei ali, parada, com a chávena a tremer-me nas mãos. O olhar da minha mãe, sentado no sofá da sala, era um misto de vergonha e tristeza. Tinha vindo viver connosco há dois meses, depois do AVC que lhe roubou metade do corpo e quase toda a autonomia. O apartamento dela em Braga estava vazio, à espera de uma decisão. E eu, no meio daquele furacão, sentia-me cada vez mais pequena.

— Rui, por favor… — tentei apaziguar, mas ele interrompeu-me.

— Não! Já chega! Isto não é vida para ninguém. A tua mãe precisa de cuidados que nós não conseguimos dar. E eu não casei contigo para viver com a tua mãe!

As palavras dele cortaram-me como facas. Lembrei-me do dia do nosso casamento, há sete anos, quando prometemos cuidar um do outro “na saúde e na doença”. Mas ninguém nos preparou para isto: para fraldas geriátricas espalhadas pela casa, para noites sem dormir por causa dos gemidos dela, para o cheiro a medicamentos entranhado nos lençóis.

A minha mãe sempre foi uma mulher forte. Trabalhava como costureira desde os 15 anos, criou-me sozinha depois que o meu pai nos deixou por outra mulher. Nunca pediu nada a ninguém. Agora, dependia de mim até para ir à casa de banho.

— Magda… — ouvi a voz dela, fraca — Se for melhor para ti, eu volto para casa. Não quero ser um peso.

Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Como podia ela pensar que era um peso? Era a minha mãe! Mas o Rui estava irredutível.

— Vende o apartamento dela — sugeriu ele, frio — Com esse dinheiro podemos pagar um lar decente. E assim temos a nossa vida de volta.

A ideia de enfiar a minha mãe num lar apertou-me o peito. Lembrei-me das histórias que lia nos jornais: idosos esquecidos, maltratados, sentados em cadeiras de rodas à espera de visitas que nunca chegam.

— Não vou fazer isso — respondi, com uma firmeza que me surpreendeu.

O Rui levantou-se abruptamente.

— Então escolhe: ou ela ou eu.

A porta bateu com força quando saiu. Fiquei ali, sozinha com a minha mãe e o silêncio pesado da casa.

Nessa noite não dormi. Fiquei sentada ao lado da cama da minha mãe, ouvindo-lhe a respiração irregular. Recordei todos os sacrifícios que ela fez por mim: as noites em claro quando eu tinha febre, os trabalhos extra para me pagar a universidade, as palavras doces quando o mundo parecia desabar.

No dia seguinte, tentei falar com o Rui antes dele sair para o trabalho.

— Rui, precisamos conversar.

Ele nem olhou para mim.

— Já disse tudo o que tinha a dizer.

— Tu prometeste estar ao meu lado nos momentos difíceis…

Ele bufou.

— Isto não é um momento difícil, Magda. Isto é uma sentença perpétua! Eu não quero viver assim!

Fiquei sem palavras. Senti-me traída. Afinal, quem era aquela pessoa com quem partilhava a vida?

Os dias seguintes foram um inferno. O Rui chegava tarde a casa, mal falava comigo. A minha mãe percebia tudo e tentava ser invisível, mas era impossível ignorar as suas necessidades.

Uma tarde, enquanto lhe dava banho, ela agarrou-me na mão com força surpreendente.

— Filha… se precisares de me pôr num lar, eu entendo. Não quero destruir o teu casamento.

Olhei-a nos olhos e vi ali todo o amor do mundo. Mas também vi medo — medo de ser descartada como um móvel velho.

Nessa noite, sentei-me à mesa da cozinha com o Rui.

— Já decidi — disse-lhe — A minha mãe fica comigo. Se não consegues aceitar isso… então talvez sejas tu quem tem de sair.

Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha.

— Estás a escolher ela em vez de mim?

— Estou a escolher quem nunca me abandonou.

O Rui fez as malas nessa mesma noite. Não chorou. Eu também não. Senti apenas um vazio enorme e uma estranha sensação de alívio.

Os meses seguintes foram duros. Tive de aprender a cuidar da minha mãe sozinha: trocar-lhe as fraldas, dar-lhe banho, levá-la às consultas no hospital de Braga. O dinheiro começou a faltar — o ordenado de professora não chegava para tudo. Vendi algumas joias antigas da família para pagar uma senhora que vinha ajudar-me algumas horas por semana.

Os amigos afastaram-se aos poucos. “Não tens tempo para nada”, diziam eles. A solidão tornou-se uma sombra constante na minha vida.

Mas também houve momentos bonitos: as tardes em que penteava o cabelo da minha mãe enquanto ela me contava histórias da infância; os sorrisos tímidos quando lhe levava flores do jardim; os abraços silenciosos quando o medo apertava demasiado.

Um dia, recebi uma carta do Rui. Dizia que tinha conhecido outra pessoa e queria o divórcio. Não fiquei surpreendida. Assinei os papéis sem hesitar.

A minha mãe foi piorando aos poucos. Os médicos diziam que era questão de tempo. Passei a dormir ao lado dela todas as noites, com medo de acordar e já não a ter ali.

Na manhã em que partiu, estava sol em Braga. Segurei-lhe na mão até ao último suspiro. Senti uma paz estranha — como se finalmente tivesse cumprido o meu dever.

Hoje vivo sozinha no mesmo apartamento onde cresci. Às vezes sinto falta do Rui, das conversas à mesa ao jantar, dos domingos preguiçosos no sofá. Mas nunca me arrependi da escolha que fiz.

Pergunto-me muitas vezes: quantos de nós seríamos capazes de sacrificar tudo por quem nos deu a vida? E tu… o que farias no meu lugar?