Quando o Amor Não Chega: Entre Sonhos Perdidos e Famílias Desfeitas
— Não posso, Inês. Não posso fazer isto à Leonor. — A voz do Miguel tremia, mas os olhos estavam frios, distantes, como se já não fossem dele.
Fiquei ali, parada no meio da sala, com o vestido de noiva ainda por experimentar pendurado na porta do armário. O silêncio pesava mais do que qualquer palavra. O relógio da cozinha marcava 19h12. Era suposto estarmos a jantar juntos, a escolher as músicas para a festa. Em vez disso, ouvia o eco daquelas palavras a rasgar-me por dentro.
— Mas… Miguel, nós… — tentei falar, mas a voz falhou-me. Senti as lágrimas a quererem sair, mas forcei-me a engolir o choro. Não queria dar-lhe esse poder. — E eu? E nós?
Ele passou as mãos pelo cabelo, nervoso. — A Leonor não te aceita, Inês. Já viste como ela tem estado desde que anunciei o casamento? Não fala comigo, não come em casa… A minha mãe também diz que estou a ser egoísta. Que devia pensar primeiro na minha filha.
A raiva misturava-se com a tristeza. — E tu? Quando é que pensas em ti? Ou em mim? — perguntei, quase num sussurro.
Ele desviou o olhar. — Eu amo-te, mas não posso perder a minha filha.
A porta fechou-se atrás dele com um estrondo seco. Fiquei sozinha, com o cheiro do bacalhau com natas que tinha feito para nós dois a invadir a casa. Sentei-me no chão da cozinha e chorei até não ter mais forças.
Os dias seguintes foram um nevoeiro. A minha mãe ligava-me de hora a hora.
— Inês, filha, tens de ser forte. Os homens são assim mesmo. Não te merecia! — dizia ela, mas eu sentia-lhe o alívio na voz. Nunca gostou do Miguel. Achava-o demasiado “complicado”, demasiado preso ao passado.
O meu pai era mais prático:
— Olha, filha, antes agora do que depois de casada. Vai à missa, distrai-te.
Mas eu não queria missa nem distrações. Queria respostas. Queria saber porque é que o amor não chega quando tudo o resto falha.
No café da vila, os olhares seguiam-me como se eu fosse um fantasma. A D. Amélia sussurrava à D. Lurdes:
— Coitada da Inês… Tanta coisa preparada para o casamento e agora isto…
E eu fingia não ouvir, mas sentia cada palavra como uma facada nas costas.
A Leonor era uma adolescente de 15 anos, magra e calada, sempre com os fones nos ouvidos e o olhar perdido no telemóvel. Desde que comecei a namorar o Miguel que ela me olhava como se eu fosse uma intrusa na vida dela e do pai. Tentei de tudo: convidei-a para sair comigo, comprei-lhe livros, fiz-lhe bolos de chocolate… Nada resultou.
Uma vez ouvi-a ao telefone com uma amiga:
— O meu pai vai casar com aquela tipa… Nem parece ele! Odeio-a!
Senti-me tão pequena nesse dia. Mas continuei a tentar. Porque amava o Miguel e acreditava que o tempo curava tudo.
Quando ele me pediu em casamento no miradouro de Santa Luzia, achei que finalmente tudo ia mudar. Que a Leonor ia perceber que eu não queria roubar-lhe o pai, só queria fazer parte da família deles.
Mas estava enganada.
A mãe do Miguel também nunca me aceitou verdadeiramente. Sempre me tratou com uma distância polida:
— Inês, querida, tens a certeza que queres isto? O Miguel já sofreu tanto…
E eu sorria e dizia que sim, que juntos íamos ser felizes.
Agora percebo que estava sozinha nessa luta.
Os meses passaram devagar. O vestido de noiva ficou esquecido no armário até ao dia em que decidi vendê-lo no OLX. Quando a compradora veio buscá-lo, olhou para mim com pena:
— Vai ver que ainda encontra alguém melhor…
Sorri-lhe sem vontade e fechei a porta assim que ela saiu.
O Miguel tentou ligar-me algumas vezes nas primeiras semanas.
— Inês… Podemos falar?
Mas eu não atendi. Não sabia o que dizer-lhe sem chorar ou gritar.
A minha irmã Marta veio passar uns dias comigo para me animar.
— Olha lá, tu sempre foste tão forte! Vais deixar um homem destruir-te assim?
Mas eu sentia-me vazia por dentro. Como se tivesse perdido uma parte de mim que nunca mais ia recuperar.
Comecei a sair sozinha ao fim de semana. Ia à praia da Costa da Caparica e ficava horas a olhar para o mar. Perguntava-me se algum dia ia conseguir amar outra vez sem medo de perder tudo de novo.
Um dia encontrei a Leonor na estação de comboios. Estava sentada sozinha num banco, com os olhos vermelhos de tanto chorar.
Sentei-me ao lado dela sem dizer nada. Ficámos ali em silêncio durante uns minutos até ela falar:
— O meu pai está triste…
Olhei para ela e vi uma miúda assustada, não uma inimiga.
— Eu também estou — respondi baixinho.
Ela encolheu os ombros.
— Ele acha que eu sou egoísta… Mas eu só queria que as coisas voltassem a ser como antes da minha mãe morrer.
Senti um nó na garganta.
— Eu nunca quis substituir ninguém, Leonor…
Ela olhou para mim pela primeira vez sem raiva nos olhos.
— Eu sei… Mas dói na mesma.
Ficámos ali mais um pouco até o comboio dela chegar. Quando se levantou para ir embora, hesitou e disse:
— Desculpa por tudo.
Sorri-lhe com tristeza.
— Não tens de pedir desculpa por sentir o que sentes.
Naquele momento percebi que todos estávamos magoados à nossa maneira. Que às vezes o amor não chega para colar os pedaços partidos de uma família desfeita pelo luto e pelo medo de perder outra vez.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito alguma coisa diferente? Teria lutado mais? Ou simplesmente aceitei cedo demais aquilo que parecia inevitável?
A vida segue e aprendi a viver com as perguntas sem resposta. Mas às vezes ainda me pergunto: será que algum dia vamos conseguir amar sem carregar connosco todos os fantasmas do passado? E vocês? Já sentiram que o amor não foi suficiente?