Acorda e faz-me um café: Como o irmão do meu marido destruiu a nossa paz
— Não podes simplesmente levantar-te e fazer-me um café? — A voz do Ricardo ecoou pela cozinha, carregada de uma arrogância que me fazia ferver o sangue logo pela manhã. Olhei para ele, sentado à mesa como se fosse o dono da casa, enquanto o meu marido, Miguel, fingia não ouvir, entretido com o telemóvel.
Senti um nó na garganta. Já era o décimo dia desde que Ricardo viera “passar um fim de semana” connosco. Dez dias de pratos sujos, toalhas molhadas no chão da casa de banho e comentários passivo-agressivos sobre a minha comida, a minha casa, a minha vida. Dez dias em que Miguel se transformou num estranho, sempre a desculpar o irmão: “Ele está a passar uma fase difícil, sabes como é…”
Mas eu sabia. Sabia que Ricardo sempre fora assim. Desde que comecei a namorar com Miguel, há quase oito anos, que ele era o irmão mais novo problemático, o que precisava sempre de ajuda, o que nunca crescia. Mas agora estava na minha casa, a invadir o meu espaço, a testar os meus limites.
— Ricardo, já te disse que podes fazer tu mesmo o café — respondi, tentando manter a voz firme. Ele revirou os olhos.
— Ena pá, que mau feitio. Não admira que o Miguel ande sempre tão calado — atirou ele, lançando-me um olhar de desafio.
Miguel levantou finalmente os olhos do telemóvel.
— Vá lá, amor, faz-lhe só um café. Ele vai embora amanhã — disse ele, num tom cansado.
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Amanhã? Já ouvira isso antes. “Amanhã” era uma promessa vazia há dias.
Fui para o quarto e fechei a porta com força. Sentei-me na cama e enterrei a cara nas mãos. O meu casamento estava a desmoronar-se diante dos meus olhos e eu sentia-me impotente. Recordei os primeiros anos com o Miguel: as noites em que ficávamos acordados a falar sobre sonhos e planos para o futuro, as viagens espontâneas ao Alentejo, os jantares em casa cheios de riso e cumplicidade. Onde é que tudo isso tinha ido parar?
O som de passos no corredor interrompeu os meus pensamentos. A porta abriu-se devagar.
— Estás bem? — perguntou Miguel, hesitante.
— Não, não estou bem — respondi, sem conseguir conter as lágrimas. — O teu irmão está a destruir-nos e tu não fazes nada!
Ele suspirou e sentou-se ao meu lado.
— Ele só precisa de um tempo para se recompor. Perdeu o emprego, a namorada deixou-o… Não tem mais ninguém.
— E nós? E eu? Não contas? — perguntei-lhe, sentindo a raiva crescer dentro de mim.
Ele ficou em silêncio. O silêncio dele era pior do que qualquer discussão.
Naquela noite, jantámos em silêncio. Ricardo reclamou da comida — “Outra vez massa?” — e deixou metade no prato antes de ir fumar para a varanda. Senti-me invisível na minha própria casa.
No dia seguinte, acordei cedo e fui correr para tentar libertar a tensão acumulada. Quando voltei, encontrei Ricardo deitado no sofá, com os pés em cima da mesa de centro e migalhas espalhadas pelo tapete.
— Olha lá, não tens nada para comer decente nesta casa? — perguntou ele sem sequer tirar os olhos da televisão.
Respirei fundo. Fui à cozinha preparar um pequeno-almoço para mim e ignorei-o. Quando Miguel acordou, encontrou-nos num silêncio gelado.
— O que se passa agora? — perguntou ele, já exasperado.
— O que se passa é que eu não aguento mais isto! — explodi finalmente. — Ou o teu irmão vai embora hoje ou eu vou!
Ricardo levantou-se do sofá com um ar ofendido.
— Olha lá, não precisas de fazer esse drama todo! Só estou aqui porque preciso de ajuda!
— Ajuda não é invadir a vida dos outros e desrespeitar quem te acolhe — respondi-lhe, já sem medo das consequências.
Miguel olhou para mim como se me visse pela primeira vez.
— Se calhar tens razão… — murmurou ele. — Ricardo, acho melhor começares a procurar outro sítio para ficar.
O choque estampado na cara do irmão foi quase cómico. Mas eu não senti alívio; senti apenas tristeza por ter chegado àquele ponto.
Ricardo fez as malas nesse dia à tarde. Antes de sair, lançou-me um olhar frio.
— Espero que fiques feliz agora — disse ele.
Fechei a porta atrás dele e encostei-me à madeira fria. Miguel aproximou-se devagar.
— Desculpa… — sussurrou ele. — Não devia ter deixado isto chegar tão longe.
Chorei nos braços dele como já não chorava há muito tempo. Mas sabia que algo tinha mudado entre nós. A confiança tinha fissuras difíceis de colar.
Nos dias seguintes tentei retomar a rotina: trabalho, ginásio, compras no supermercado do bairro onde toda a gente se conhece pelo nome. Mas sentia-me diferente. Mais dura por dentro, menos disposta a ceder só para agradar aos outros.
Uma noite sentei-me com Miguel na varanda e perguntei-lhe:
— Achas que algum dia vamos voltar ao que éramos?
Ele ficou em silêncio durante muito tempo antes de responder:
— Não sei… Mas quero tentar.
Olhei para as luzes da cidade ao longe e pensei em tudo o que perdera e ganhara naquele processo doloroso de impor limites. Será que vale sempre a pena sacrificar-nos pelos outros? Ou chega uma altura em que temos mesmo de escolher por nós?