Quando o Amor Foge: A Minha Luta Após o Abandono e o Diagnóstico dos Meus Gémeos
— Não consigo mais, Sofia. Não sou feito para isto. — As palavras do Miguel ecoaram pela cozinha fria, enquanto ele arrastava a mala até à porta. O relógio marcava quase meia-noite e os gémeos, o Diogo e o Tomás, dormiam finalmente depois de horas de choro inconsolável. Eu estava de costas para ele, mãos apoiadas no balcão, tentando controlar o tremor que me percorria o corpo.
— Vais mesmo deixar-nos agora? — perguntei, a voz embargada, sem coragem de me virar.
— Não aguento, Sofia. Não consigo lidar com isto. Preciso de respirar. — E saiu, fechando a porta com um estrondo que me fez estremecer.
Fiquei ali parada, a ouvir o silêncio pesado da casa. Ouvia apenas o meu coração a bater descompassado e o som distante do comboio que passava ao longe. Senti-me vazia, traída, mas acima de tudo assustada. Como é que ia cuidar dos meus filhos sozinha? Como é que ia enfrentar tudo isto sem ninguém ao meu lado?
O diagnóstico tinha chegado há apenas três meses. Primeiro foi o Diogo, depois o Tomás. O pediatra do centro de saúde de Almada foi claro: ambos tinham sinais evidentes de autismo. Lembro-me de sair do consultório com os gémeos ao colo, os olhos cheios de lágrimas e a cabeça cheia de perguntas sem resposta.
A partir desse dia, tudo mudou. Miguel começou a afastar-se. Passava mais tempo no trabalho, chegava tarde e evitava olhar para os meninos quando eles tinham uma crise. Eu tentava manter a rotina: levá-los à terapia ocupacional, às consultas de desenvolvimento, às sessões de fonoaudiologia. Mas era como remar contra uma maré cada vez mais forte.
A minha mãe ligava todos os dias:
— Sofia, tens de ser forte pelos meninos. Eles precisam de ti.
Mas eu sentia-me cada vez mais fraca. As noites eram longas e solitárias. O Diogo acordava a gritar, assustado com qualquer ruído. O Tomás batia com a cabeça na parede quando não conseguia expressar o que sentia. Eu tentava acalmá-los, cantar-lhes baixinho as músicas que a minha avó me cantava em pequena:
— Dorme, dorme, meu menino, que a mãe está aqui contigo…
Mas muitas vezes chorávamos os três juntos até adormecermos exaustos.
Os vizinhos começaram a comentar:
— Aquela Sofia coitada… O marido fugiu-lhe por causa dos miúdos.
— Dizem que os meninos são “especiais”. Deve ser um castigo…
As palavras feriam mais do que qualquer bofetada. Sentia-me julgada em cada ida ao supermercado, em cada ida ao parque onde as outras mães se afastavam quando viam o Diogo a balançar-se compulsivamente ou o Tomás a gritar sem motivo aparente.
O dinheiro começou a faltar. O Miguel deixou de pagar as despesas da casa e eu tive de pedir ajuda à Segurança Social. Fui chamada à assistente social:
— Sofia, compreendo a sua situação, mas há muitos casos prioritários…
Saí dali humilhada, com um vale para alimentos e uma promessa vaga de apoio psicológico.
Os meus pais ajudavam como podiam, mas viviam longe, em Viseu, e já não tinham saúde para grandes viagens. A minha irmã Inês vinha aos fins-de-semana quando podia:
— Sofia, tens de descansar um pouco. Vai tomar um banho quente, eu fico com eles.
Mas eu mal conseguia relaxar. Sentia culpa por precisar de ajuda, sentia raiva do Miguel por nos ter abandonado, sentia medo do futuro.
Uma noite, depois de mais uma crise do Tomás, sentei-me no chão da sala e chorei como nunca tinha chorado antes. Senti-me tão pequena, tão impotente… Olhei para os meus filhos a dormir no sofá e perguntei-me se algum dia seriam felizes.
Foi nessa noite que decidi procurar um grupo de apoio para pais de crianças com autismo. Encontrei um grupo no Facebook chamado “Mães Guerreira”. Comecei a ler histórias parecidas com a minha: mães sozinhas, pais ausentes, crianças incompreendidas. Pela primeira vez em meses senti que não estava sozinha.
Comecei a partilhar as minhas angústias:
— Hoje o Diogo conseguiu olhar-me nos olhos durante cinco segundos! — escrevi um dia.
Recebi dezenas de mensagens de apoio:
— Força, Sofia! Cada conquista é uma vitória!
— Os nossos meninos são especiais porque nos ensinam a amar sem condições!
Essas palavras deram-me alento para continuar.
Com o tempo fui aprendendo a lidar melhor com as crises dos gémeos. Descobri que o Diogo adorava água — então enchia-lhe uma bacia para ele brincar sempre que estava agitado. O Tomás acalmava-se quando lhe dava um brinquedo macio para apertar.
Comecei também a lutar pelos direitos deles: fui à escola primária local exigir adaptações curriculares; escrevi cartas à Câmara Municipal a pedir rampas de acesso e transportes adaptados; organizei uma reunião com outras mães para pressionar o centro de saúde por mais terapeutas especializados.
A vida continuava difícil — muito difícil — mas já não me sentia tão derrotada.
Um dia recebi uma mensagem do Miguel:
— Podemos falar?
O coração disparou-me no peito. Hesitei antes de responder:
— Sobre o quê?
Ele apareceu lá em casa no domingo seguinte. Estava magro, olheiras fundas.
— Desculpa ter fugido assim… Não consegui lidar com tudo isto. Sinto-me um falhado.
Olhei para ele durante longos segundos antes de responder:
— Não precisavas de ser perfeito. Só precisavas de estar presente.
Ele chorou pela primeira vez desde que nos conhecemos. Mas eu já não era a mesma Sofia ingénua que acreditava em finais felizes fáceis.
— Os meninos precisam do pai — disse-lhe — mas eu não posso obrigar-te a ficar se não queres lutar connosco.
Miguel começou a visitar os gémeos aos fins-de-semana. Era estranho vê-lo ali, tão distante e ao mesmo tempo tão próximo dos filhos que quase não conhecia. Mas percebi que cada família tem o seu próprio caminho para sarar as feridas.
Hoje continuo sozinha na maior parte dos dias. Trabalho como administrativa numa escola secundária e faço malabarismos entre horários e consultas médicas. Os gémeos têm agora seis anos e continuam a surpreender-me todos os dias: o Diogo já diz algumas palavras; o Tomás aprendeu a dar abraços apertados quando está feliz.
Ainda tenho medo do futuro — muito medo — mas aprendi que sou mais forte do que pensava.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres como eu existem em Portugal? Quantas mães lutam sozinhas todos os dias sem serem vistas ou ouvidas? Será que algum dia vamos conseguir mudar esta realidade?