Entre Silêncios e Gritos: O Meu Caminho na Sombra da Doença
— Não, mãe! Eu não vou desistir do curso agora! — gritei, sentindo a garganta arder, enquanto as lágrimas me escorriam pelo rosto. O eco da minha voz perdeu-se na cozinha fria, onde o cheiro do café queimado se misturava ao silêncio pesado que se seguiu. A minha mãe olhava para mim com olhos vermelhos, as mãos trémulas agarradas ao pano da loiça. O meu pai, sentado à mesa, mantinha o olhar fixo na chávena, como se ali estivesse a resposta para tudo.
Naquela manhã, o telefone tocou cedo. O Dr. Álvaro pediu que fosse ao consultório com urgência. O caminho até ao hospital dos Covões pareceu-me interminável. O céu estava cinzento e a chuva batia nos vidros do autocarro como dedos impacientes. Senti um aperto no peito — uma premonição, talvez.
Quando entrei no consultório, o médico não sorriu. Sentou-se à minha frente e pousou os papéis com cuidado.
— Ricardo, os exames confirmam… É uma doença autoimune rara. Vai ser preciso muita força.
A palavra “rara” ficou a ecoar na minha cabeça como um trovão distante. Saí do hospital com os papéis na mão e um vazio no peito. Não sabia como contar aos meus pais. Não sabia sequer como respirar.
Naquela noite, o jantar foi um ritual silencioso. O meu irmão mais novo, Tiago, olhava para mim de soslaio, como se eu fosse feito de vidro. Quando finalmente contei, a minha mãe desatou a chorar e o meu pai levantou-se abruptamente, saindo para o quintal sem dizer palavra.
Os dias seguintes foram um turbilhão de consultas, exames e medicamentos. A universidade parecia um sonho distante. Os meus amigos começaram a afastar-se — uns por medo, outros por não saberem o que dizer. Senti-me sozinho como nunca antes.
Uma noite, ouvi os meus pais a discutir no corredor.
— Ele devia parar com os estudos! Precisa de descansar! — dizia a minha mãe.
— E depois? Fica em casa a definhar? — respondeu o meu pai, num tom baixo mas firme.
A raiva cresceu dentro de mim. Não queria ser um fardo. Não queria ser olhado com pena.
No início do segundo semestre, decidi voltar às aulas. Os professores olhavam-me com compaixão disfarçada. A Maria João, colega de curso e amiga de infância, foi das poucas que ficou ao meu lado.
— Vais conseguir, Ricardo. Eu ajudo-te com os apontamentos — disse-me ela uma tarde na biblioteca.
Mas havia dias em que o corpo não respondia. As dores eram tão intensas que mal conseguia segurar uma caneta. Houve semanas em que pensei em desistir de tudo. Numa dessas noites, sentei-me à janela do meu quarto e escrevi no diário:
“Se amanhã não acordar, será que alguém vai notar?”
Mas depois lembrava-me do Tiago, dos olhos dele cheios de esperança quando me pedia ajuda nos trabalhos de casa. Lembrava-me da Maria João e dos sorrisos cúmplices nas tardes de estudo. E agarrava-me a isso como quem se agarra a uma tábua no meio do naufrágio.
A doença trouxe-me uma lucidez cruel: percebi quem eram os verdadeiros amigos e aprendi a valorizar os pequenos gestos — um chá quente deixado à porta do quarto pela minha mãe, um bilhete encorajador da Maria João antes de um exame difícil.
Mas também trouxe conflitos. O meu pai começou a chegar mais tarde a casa. A minha mãe tornou-se mais ansiosa e controladora. As discussões eram frequentes:
— Não podes ir à viagem de finalistas! — gritava ela.
— Deixa-o viver! — respondia o meu pai, já sem paciência.
Senti-me preso entre dois mundos: o da doença e o da vida que queria viver.
No terceiro ano da licenciatura, fui internado durante duas semanas por causa de uma crise grave. Lembro-me do cheiro a desinfetante, das noites em claro com medo de adormecer e não acordar. Uma noite, ouvi uma senhora idosa na cama ao lado rezar baixinho:
— Senhor, dá-me força para mais um dia.
Chorei em silêncio. Pela primeira vez em muito tempo, rezei também.
Quando voltei para casa, encontrei o Tiago à porta do quarto com um desenho nas mãos.
— Fiz isto para ti — disse ele timidamente.
No papel estava desenhado um super-herói com capa vermelha e um sorriso enorme.
— És tu — explicou ele.
Aquele gesto simples deu-me forças para continuar.
No último ano do curso, desafiei-me a candidatar-me ao prémio de melhor aluno da faculdade. Os meus pais acharam que era loucura.
— Não te metas nisso agora… — pediu a minha mãe.
— Deixa-o tentar — disse o meu pai, finalmente do meu lado.
Estudei noites inteiras, entre dores e cansaço. A Maria João esteve sempre comigo — às vezes só para me ouvir chorar ou para me obrigar a comer qualquer coisa.
No dia da entrega dos prémios, sentei-me na primeira fila do auditório com as mãos suadas e o coração aos pulos. Quando chamaram o meu nome como melhor aluno do ano, olhei para os meus pais na plateia: a minha mãe chorava abertamente; o meu pai sorria orgulhoso; o Tiago batia palmas como se eu tivesse ganho uma medalha olímpica.
Pouco tempo depois recebi uma proposta de trabalho em Lisboa — um emprego que sempre sonhei. A despedida foi dura; a minha mãe abraçou-me como se nunca mais me fosse ver.
Hoje vivo sozinho num pequeno apartamento perto do Tejo. Ainda luto todos os dias contra a doença — há manhãs em que mal me consigo levantar da cama. Mas aprendi que a força não vem só do corpo; vem do amor das pessoas que nos rodeiam e da coragem de não desistir de nós próprios.
Às vezes pergunto-me: quantos de nós vivem presos entre silêncios e gritos? Quantos desistem antes de descobrir que são mais fortes do que pensavam? E tu… já encontraste a tua luz na escuridão?