Quando o Silêncio Grita: A Minha Luta por Igualdade no Meu Casamento com o Rui
— Outra vez a loiça por lavar, Sofia? — a voz do Rui ecoou pela cozinha, carregada de impaciência, enquanto eu me sentava à mesa, com as mãos trémulas a segurar uma chávena de chá frio. Olhei para ele, cansada, e respondi num sussurro: — E tu, Rui, não tens mãos?
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. O relógio da parede marcava quase meia-noite. As crianças já dormiam há horas, e eu sentia o peso de mais um dia inteiro de trabalho — não só no escritório, mas também em casa. O Rui largou a mochila no chão e passou por mim sem dizer mais nada. Senti uma lágrima quente escorrer-me pela face. Não era só cansaço físico; era um cansaço da alma, de anos a fio a fazer tudo sozinha.
Lembro-me do início do nosso casamento, há quinze anos. Eu tinha vinte e quatro anos, cheia de sonhos e energia. O Rui era divertido, atencioso, e prometeu-me um futuro a dois, onde tudo seria partilhado. Mas, com o tempo, as promessas foram-se diluindo na rotina. Ele trabalhava como engenheiro civil, muitas vezes fora de casa, e eu — professora primária — acabei por assumir tudo o resto: refeições, roupa, limpezas, compras, filhos. “Ele trabalha tanto”, diziam-me as amigas. “Tens sorte que ele traz dinheiro para casa.” Mas será que isso era suficiente?
A minha mãe sempre me dizia: “Sofia, casamento é parceria.” Mas na prática, parecia que só eu é que via isso assim. O Rui chegava a casa e sentava-se no sofá, pegava no telemóvel ou ligava a televisão. Eu continuava a correr de um lado para o outro: preparar jantares, ajudar os miúdos com os trabalhos de casa, arrumar brinquedos espalhados pela sala.
Certa noite, depois de um dia particularmente difícil na escola — uma aluna minha tinha perdido o pai num acidente — cheguei a casa exausta. Encontrei o Rui no sofá, com os pés em cima da mesa de centro e uma cerveja na mão. A cozinha estava um caos: pratos empilhados, restos de comida no fogão. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Não podias ter arrumado nada? — perguntei-lhe, tentando controlar a voz.
Ele encolheu os ombros: — Estive a trabalhar todo o dia. Preciso de descansar.
— E eu? Também trabalho! — gritei-lhe pela primeira vez em anos.
Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha. — Não faças uma tempestade num copo de água.
Foi nessa noite que decidi: não ia fazer mais tudo sozinha. Durante uma semana inteira, deixei de lavar a loiça, de arrumar a roupa dele, de preparar-lhe o pequeno-almoço. As crianças começaram a perguntar porque é que a casa estava desarrumada. O Rui começou a resmungar cada vez mais alto.
Na sexta-feira à noite, explodiu:
— Isto está uma vergonha! Não percebo o que se passa contigo.
Sentei-me à frente dele e olhei-o nos olhos:
— O que se passa é que estou cansada de ser tua empregada. Quero ser tua mulher. Quero sentir que somos uma equipa.
Ele ficou em silêncio durante uns segundos eternos. Depois levantou-se e saiu de casa sem dizer palavra.
Nessa noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do quarto escuro, a ouvir o tic-tac do relógio e a pensar em tudo o que tínhamos construído juntos — ou talvez só eu tivesse construído. Lembrei-me do nascimento do nosso primeiro filho, do medo e da alegria misturados quando trouxemos o pequeno Miguel para casa. Lembrei-me das noites em claro com febres e tosses, das festas de aniversário organizadas à pressa depois do trabalho. Sempre fui eu a garantir que tudo corria bem.
No sábado de manhã, o Rui voltou. Trazia olheiras profundas e um ar derrotado.
— Fui dormir ao carro — disse-me baixinho. — Não consegui pensar em mais nada senão nisto.
Sentei-me ao lado dele na cama.
— Rui… eu amo-te. Mas não posso continuar assim. Preciso que percebas que isto não é só teu direito; é também tua responsabilidade.
Ele passou as mãos pelo rosto e suspirou:
— Eu sei que não tenho ajudado… mas sempre pensei que era assim que as coisas funcionavam. O meu pai nunca fez nada em casa…
— Pois — interrompi-o — mas nós não somos os teus pais nem os meus. Temos de ser melhores para nós e para os nossos filhos.
O Rui ficou calado durante muito tempo. Depois levantou-se e foi buscar um balde e detergente. Começou a lavar a loiça sem dizer nada. Senti um nó na garganta — não era bem isto que eu queria; queria compreensão verdadeira, não apenas gestos automáticos.
Os dias seguintes foram estranhos. Ele fazia algumas tarefas mas sempre com ar contrariado ou como se estivesse a fazer-me um favor. As discussões tornaram-se mais frequentes; as crianças começaram a perceber o ambiente tenso em casa.
Uma noite, depois de todos já estarem na cama, sentei-me sozinha na varanda com uma manta sobre os ombros. Olhei para as luzes da cidade ao longe e chorei baixinho. Senti-me perdida entre o amor pelo Rui e o desejo profundo de ser respeitada como igual.
No domingo seguinte, fomos almoçar à casa dos meus sogros em Sintra. A mãe do Rui serviu-lhe o prato antes de todos e comentou:
— Os homens cá em casa nunca mexeram uma palha…
Olhei para ela e respondi:
— Pois… mas os tempos mudam.
O silêncio caiu sobre a mesa como uma pedra pesada. O sogro tossiu desconfortável; o Rui olhou para mim com ar magoado.
No regresso a casa discutimos outra vez:
— Tinhas mesmo de dizer aquilo à minha mãe?
— Tinha! Porque é verdade! Não quero que os nossos filhos cresçam a achar que isto é normal!
Ele ficou calado durante o resto da viagem.
As semanas passaram e comecei a sentir-me cada vez mais sozinha dentro do nosso casamento. O Rui tentava mudar mas parecia sempre forçado; eu sentia-me culpada por exigir mais dele mas sabia que não podia voltar atrás.
Um dia, depois de deixar as crianças na escola, sentei-me num café perto do trabalho com a minha amiga Inês.
— Sofia… tu tens direito à tua felicidade — disse ela enquanto mexia o café — Não podes sacrificar-te sempre pelos outros.
As palavras dela ecoaram em mim durante dias inteiros.
Numa noite chuvosa de novembro, depois de mais uma discussão sobre quem devia ir buscar os miúdos ao futebol, sentei-me com o Rui na sala.
— Rui… precisamos mesmo de ajuda profissional. Isto não está a funcionar assim.
Ele olhou para mim surpreendido mas acenou com a cabeça.
Começámos terapia de casal na semana seguinte. As sessões foram duras; ouvimos verdades difíceis sobre nós próprios e sobre aquilo que esperávamos um do outro. Chorámos juntos pela primeira vez em anos.
Aos poucos, começámos a reconstruir alguma coisa nova entre nós — algo mais honesto e equilibrado. Não foi fácil; ainda hoje temos dias maus. Mas agora sei que não estou sozinha nesta luta.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem esta mesma batalha silenciosa todos os dias? Quantos casamentos sobrevivem apenas porque alguém se anula em nome da paz?
Será que vale mesmo a pena sacrificar quem somos pelo conforto dos outros? E vocês… já sentiram este peso invisível dentro das vossas casas?