Entre Panelas e Silêncios: O Peso das Expectativas em Casa
— Outra vez arroz seco, Mariana? — O tom do Rui ecoou pela cozinha, cortando o silêncio do fim de tarde. Eu estava de costas para ele, a mexer o tacho, mas senti o peso das palavras como se fossem pedras a cair-me nos ombros. O cheiro do refogado enchia a casa, mas parecia que nada do que eu fazia era suficiente para agradar-lhe.
Lembro-me de quando éramos namorados e ele elogiava tudo o que eu cozinhava. “És uma artista, Mariana”, dizia-me, com aquele sorriso que me fazia acreditar que juntos podíamos enfrentar o mundo. Agora, passados sete anos de casamento, cada refeição tornou-se um campo minado. Se o arroz não estava no ponto, era porque eu não sabia cozinhar como a mãe dele. Se o peixe tinha espinhas, era porque eu não tinha cuidado. Se tentava inovar, ouvia um suspiro e um “preferia como a minha mãe faz”.
No início, tentei ignorar. Dizia a mim mesma que era cansaço do trabalho, que ele precisava de tempo para se adaptar à vida a dois. Mas as críticas tornaram-se rotina. Comecei a duvidar de mim própria. Será que sou mesmo tão má dona de casa? Será que não sirvo para isto?
O pior era aos domingos. Íamos almoçar à casa da Dona Teresa, minha sogra. Rui sentava-se à mesa e devorava tudo: bacalhau com natas, arroz de pato, até as couves cozidas que em casa dizia detestar. Eu observava-o em silêncio, sentindo uma mistura de raiva e tristeza. Como era possível? Porque é que lá tudo lhe sabia bem?
Uma vez, não aguentei e perguntei-lhe no carro, no regresso a casa:
— Rui, porque é que na casa da tua mãe comes tudo e aqui em casa criticas sempre o que faço?
Ele encolheu os ombros e respondeu:
— Não sei… Lá é diferente. É comida da minha infância.
Fiquei sem palavras. Senti-me pequena, invisível. Como se nunca fosse capaz de ocupar aquele lugar especial que a mãe dele tinha no coração — e na barriga.
As discussões começaram a aumentar. Um dia, depois de mais uma crítica ao meu arroz de tomate, explodi:
— Se não gostas do que faço, cozinha tu! Ou então vai viver com a tua mãe!
Ele ficou calado, olhou-me como se eu fosse uma estranha.
Naquela noite, chorei baixinho na casa de banho para não acordar os nossos filhos. Senti-me sozinha, incompreendida. O casamento era suposto ser uma parceria, mas eu sentia-me numa competição constante com a Dona Teresa — uma competição que nunca poderia ganhar.
Comecei a evitar cozinhar pratos tradicionais. Arrisquei receitas novas: caril de frango, lasanha vegetariana, saladas coloridas. Rui torcia o nariz e acabava por comer só pão com queijo. Os miúdos perguntavam porque é que o pai não comia como eles.
A pressão foi crescendo até ao ponto em que deixei de ter prazer em cozinhar. Fazia-o por obrigação, sem amor nem criatividade. Sentia-me uma máquina programada para alimentar uma família ingrata.
Certa tarde, fui buscar os miúdos à escola e encontrei a Dona Teresa à porta da nossa casa com um tupperware gigante.
— Fiz arroz doce para vocês — disse ela com um sorriso.
Agradeci, mas por dentro senti uma pontada de ciúmes e frustração. Quando Rui chegou a casa e viu o arroz doce da mãe, os olhos brilharam-lhe como há muito não via.
Nessa noite, sentei-me sozinha na varanda enquanto eles comiam e riam na cozinha. Pensei em tudo o que tinha abdicado desde que casei: os meus sonhos profissionais adiados para cuidar dos filhos, as noites mal dormidas, as horas passadas a tentar agradar a todos menos a mim própria.
No dia seguinte, decidi falar com Rui abertamente.
— Rui, preciso que me ouças sem interromper — pedi-lhe.
Ele assentiu, surpreendido pela minha firmeza.
— Sinto-me desvalorizada nesta casa. Faço tudo para agradar-te e só recebo críticas. Quando estamos na tua mãe és outra pessoa. Não sei se o problema sou eu ou se é algo entre nós… mas assim não consigo continuar.
Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.
— Mariana… nunca pensei nisso dessa forma. Acho que… nem me apercebo do que faço.
— Pois devias aperceber-te — respondi com lágrimas nos olhos. — Porque dói muito.
Nos dias seguintes, Rui tentou mudar. Elogiou um ou outro prato, ajudou mais nas tarefas da casa. Mas sentia que era forçado, como se estivesse a cumprir um papel para evitar discussões.
A relação foi arrefecendo. Começámos a falar menos, a partilhar menos sonhos e medos. Os jantares tornaram-se silenciosos; os domingos em casa da Dona Teresa eram cada vez mais frequentes.
Um sábado à noite, depois de pôr os miúdos na cama, sentei-me no sofá e olhei para as fotografias antigas na estante: nós dois sorridentes no nosso primeiro apartamento; o nascimento do nosso filho mais velho; férias em Vila Nova de Milfontes antes de tudo se complicar.
Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha melhor amiga:
“Preciso de falar contigo. Sinto-me perdida.”
Ela veio ter comigo no dia seguinte e ouvimo-nos durante horas. Pela primeira vez em muito tempo senti-me compreendida.
— Mariana, tu não és menos mulher por não cozinhares como a Dona Teresa — disse ela. — O Rui tem de perceber isso sozinho.
Aquelas palavras ficaram-me na cabeça durante dias. Comecei a pensar mais em mim: inscrevi-me num curso online de fotografia; voltei a correr ao fim da tarde; deixei de tentar agradar tanto ao Rui.
Curiosamente, foi nessa altura que ele começou a perguntar-se por mim:
— Mariana, vens jantar?
— Mariana, queres ir ao cinema?
Mas já era tarde demais? Senti que algo se tinha partido dentro de mim.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas às expectativas dos outros? Quantas sacrificam os seus sonhos para agradar maridos e sogras? Será justo carregar esse peso sozinhas?
E vocês? Já sentiram este vazio dentro das vossas próprias casas? Até onde devemos ir para agradar quem amamos?