Do Outro Lado da Parede: A Fronteira Que Não Devemos Ultrapassar

— Não aguento mais, Rui! — gritei, sentindo a voz tremer enquanto o som abafado de passos pesados ecoava do outro lado da parede. — Eles estão outra vez a arrastar móveis à meia-noite! Isto não é vida!

Rui olhou-me cansado, os olhos fundos de quem já não dormia há semanas. — Mariana, já falámos com eles três vezes. Não podemos continuar assim. — A sua voz era baixa, quase resignada, mas eu sentia a raiva a crescer dentro de mim como uma onda imparável.

Quando nos mudámos para o apartamento em Arroios, Lisboa, há seis meses, tudo parecia perfeito. O prédio era antigo, mas tinha charme; as ruas cheias de vida, cafés e mercados. Eu sonhava com tardes tranquilas na varanda e jantares a dois. Mas logo na primeira noite, percebi que a parede que nos separava dos vizinhos era fina como papel. O casal do lado, a Dona Lurdes e o filho adulto, Tiago, pareciam viver num fuso horário diferente: televisão alta até de madrugada, discussões acesas e festas improvisadas.

No início tentei ser compreensiva. “São só uns dias maus”, dizia a mim mesma. Mas as noites em claro começaram a afetar tudo: o meu trabalho como professora, o humor do Rui, até a nossa intimidade. Começámos a discutir por tudo e por nada. Uma manhã, depois de mais uma noite sem dormir, Rui explodiu:

— Mariana, se não resolves isto hoje, eu vou dormir para casa da minha mãe!

Senti-me traída. Não era só o barulho dos vizinhos; era como se o nosso casamento estivesse a desmoronar-se junto com as paredes rachadas daquele prédio velho.

Tomei coragem e bati à porta da Dona Lurdes. Ela abriu com um sorriso amarelo.

— Olá vizinha! Precisa de alguma coisa?

— Dona Lurdes, desculpe incomodar, mas será que podiam ter mais cuidado com o barulho à noite? Eu e o Rui temos tido dificuldades em descansar…

Ela interrompeu-me com um gesto brusco.

— Olhe menina Mariana, isto aqui sempre foi assim. Se não gostam, mudem-se! — E bateu-me com a porta na cara.

Voltei para casa a tremer de raiva e humilhação. Rui ouviu tudo do corredor e limitou-se a encolher os ombros.

— Vês? Não vale a pena…

Mas eu não conseguia desistir. Comecei a registar os horários do barulho, gravei áudios no telemóvel e fui ao condomínio pedir ajuda. O administrador, o Sr. António, ouviu-me pacientemente.

— Mariana, percebo o seu desespero, mas a Dona Lurdes está cá há mais de vinte anos. Nunca ninguém conseguiu mudar nada…

Senti-me sozinha. Até os outros vizinhos pareciam ter desistido há muito tempo. A tensão em casa aumentava todos os dias. Rui começou a chegar mais tarde do trabalho e evitava conversar comigo. Uma noite, depois de uma discussão particularmente violenta do outro lado da parede, sentei-me no chão da cozinha e chorei baixinho para não me ouvirem.

No dia seguinte, recebi uma mensagem da minha mãe: “Filha, estás bem? Sinto-te distante.” Hesitei antes de responder. Não queria preocupar ninguém, mas sentia-me tão perdida…

As semanas passaram e o ambiente tornou-se insuportável. Um sábado à noite, ouvi gritos vindos do apartamento dos vizinhos. Desta vez eram diferentes — havia desespero na voz da Dona Lurdes. Chamei Rui e juntos ouvimos Tiago a chorar:

— Mãe, pára! Por favor!

O meu coração apertou-se. Pela primeira vez senti empatia por eles. Talvez também estivessem presos numa situação impossível.

No dia seguinte cruzei-me com Tiago nas escadas. Tinha os olhos vermelhos e evitou olhar para mim.

— Tiago… está tudo bem? — arrisquei perguntar.

Ele hesitou antes de responder:

— Desculpe pelo barulho… A minha mãe está doente. Às vezes não consigo controlar as coisas aqui em casa.

Fiquei sem palavras. Toda a raiva deu lugar à culpa e à compaixão. Voltei para casa e contei tudo ao Rui.

— E agora? — perguntou ele.

— Não sei… Talvez devêssemos tentar ajudar em vez de só reclamar.

Nos dias seguintes tentei ser mais paciente. Levei um bolo à Dona Lurdes e ofereci-me para ajudar com as compras. Ela aceitou sem dizer muito, mas notei um brilho diferente nos olhos dela.

O barulho não desapareceu completamente, mas tornou-se menos frequente. Aos poucos, eu e Rui começámos a conversar mais sobre nós próprios do que sobre os vizinhos. Percebi que estávamos a usar o conflito externo para evitar enfrentar os nossos próprios problemas: o medo de falhar, as expectativas não cumpridas, as frustrações acumuladas.

Um dia sentei-me ao lado do Rui na varanda e perguntei:

— Achas que ainda somos felizes aqui?

Ele ficou em silêncio durante um longo momento antes de responder:

— Acho que nunca tentámos verdadeiramente ser felizes juntos neste lugar… Só queríamos fugir dos nossos problemas antigos.

Abracei-o e chorámos juntos pela primeira vez em meses.

Hoje olho para trás e vejo que aquela parede fina não separava apenas dois apartamentos; era também uma fronteira invisível entre aquilo que toleramos nos outros e aquilo que suportamos em nós próprios. Aprendi que às vezes é preciso olhar além do barulho para perceber o sofrimento alheio — e o nosso próprio sofrimento também.

Pergunto-me: quantas vezes deixamos que pequenas guerras diárias destruam aquilo que mais amamos? Até onde devemos ir para manter a paz sem perdermos quem somos? E vocês, já sentiram que uma simples parede podia mudar tanto na vossa vida?