Desde que o meu neto nasceu, só o vejo em fotografias – porque não me deixam abraçá-lo?
— Não, mãe. A Andreia não quer visitas agora. — A voz do meu filho, João, soava cansada, quase derrotada ao telefone. — Ela ainda está a recuperar, sabes como é…
Mas eu sabia que não era só isso. Desde o nascimento do meu neto, há três meses, só o vi em fotografias enviadas pelo WhatsApp. Fotografias frias, sem cheiro a bebé, sem o calor de um abraço. E eu, Maria do Carmo, que sempre sonhei em ser avó presente, sinto-me agora como uma estranha à porta da própria família.
Lembro-me do dia em que soube que ia ser avó. O João entrou pela cozinha adentro com um sorriso nervoso e a Andreia atrás dele, de olhos baixos. — Mãe, vamos ter um bebé — disse ele. Eu larguei o pano da loiça e abracei-os com força. — Que alegria! — exclamei, já a imaginar as tardes de domingo com a casa cheia de risos infantis.
Mas tudo mudou depois do parto. Tentei visitar o hospital, levei flores e um casaquinho de lã tricotado por mim. A Andreia olhou-me de lado, quase não falou. Pensei que fosse cansaço. Mas quando liguei para saber se podia passar lá a casa para conhecer o bebé, o João hesitou: — Agora não é boa altura, mãe.
Os dias passaram. Liguei, mandei mensagens, ofereci-me para ajudar com as compras ou com as tarefas domésticas. Sempre a mesma resposta: — Agora não dá, mãe.
Comecei a sentir uma ansiedade sufocante. O que teria feito eu para merecer isto? Recordei todas as conversas com a Andreia durante a gravidez. Talvez tenha dado demasiados conselhos? Talvez tenha dito algo errado sem perceber? Uma vez sugeri que ela comesse mais sopa para o bem do bebé — ela ficou calada, mas agora penso se não terá levado a mal.
O João foi-se afastando também. Quando vinha cá a casa buscar alguma coisa ou trazer recados, estava sempre apressado. — Não posso demorar, mãe. O bebé precisa de mim.
Uma noite, não aguentei mais e liguei-lhe em lágrimas:
— João, por favor… Eu só quero conhecer o meu neto. O que é que se passa? Porque é que a Andreia não me quer lá?
Do outro lado ouvi um suspiro pesado.
— Mãe… A Andreia acha que tu não respeitas os limites dela. Diz que te metes demasiado nas decisões dela como mãe…
Fiquei sem palavras. Eu? Só queria ajudar! Sempre fui assim com toda a gente — pronta para dar uma mãozinha, para partilhar o que aprendi ao longo da vida.
— Mas eu só quero ajudar… — balbuciei.
— Eu sei, mãe. Mas ela sente-se invadida. E eu… eu tenho de apoiar a minha mulher agora.
Senti um nó na garganta. O meu próprio filho a escolher entre mim e ela. Lembrei-me do meu marido, António, falecido há cinco anos. Ele saberia o que fazer. Ele sempre dizia: “Maria do Carmo, às vezes é preciso dar espaço aos outros para eles virem ter connosco.” Mas como dar espaço quando tudo o que quero é estar perto?
Os dias tornaram-se longos e vazios. As amigas perguntavam pelo bebé e eu sorria amarelo: — Está lindo, parece-se com o pai… Só ainda não tive oportunidade de o ver ao vivo.
No supermercado, via outras avós com os netos ao colo e sentia uma dor aguda no peito. Porque é que eu não podia ter aquilo? O que fiz eu de tão grave?
Tentei escrever uma carta à Andreia:
“Querida Andreia,
Sei que as coisas não têm sido fáceis entre nós. Quero pedir desculpa se alguma vez te fiz sentir desconfortável ou invadida. Só quero ser uma boa avó para o teu filho e ajudar no que puderes precisar.
Com carinho,
Maria do Carmo”
Esperei dias por resposta. Nada.
O Natal aproximava-se e eu decidi arriscar tudo: comprei um presente para o bebé — um ursinho de peluche azul — e fui até à casa deles sem avisar. Toquei à campainha com as mãos a tremer.
A Andreia abriu a porta só uma fresta.
— Olá, Andreia… Trouxe um presente para o bebé… Será que posso vê-lo só um bocadinho?
Ela olhou-me nos olhos e vi ali uma muralha intransponível.
— Não é boa altura, Maria do Carmo. Estamos cansados e queremos estar sossegados.
A porta fechou-se devagarinho na minha cara.
Fiquei ali parada uns segundos, com o ursinho apertado ao peito como se fosse um escudo contra aquela rejeição tão fria.
Voltei para casa desfeita em lágrimas. Sentei-me no sofá rodeada pelas fotografias antigas: o João em pequeno ao colo do pai, as festas de aniversário cheias de família e gargalhadas. Onde foi que tudo se perdeu?
No dia seguinte recebi uma mensagem do João:
“Mãe, por favor respeita o nosso espaço por agora. Quando estivermos prontos, avisamos.”
Senti-me como se tivesse sido expulsa da minha própria família.
As semanas passaram e fui-me fechando cada vez mais em mim mesma. Já nem conseguia olhar para as fotografias do neto sem chorar. Comecei a duvidar de tudo: teria sido uma mãe demasiado controladora? Teria falhado em ensinar ao João a importância da família?
Um dia, a minha vizinha Dona Emília bateu-me à porta:
— Maria do Carmo, ouvi dizer que ainda não viste o teu neto… Que tristeza! Olha que hoje em dia as noras são muito diferentes…
Desabafei com ela como nunca tinha feito antes:
— Sinto-me tão sozinha… Só queria poder abraçar aquele menino…
Ela pousou-me a mão no ombro:
— Às vezes é preciso esperar, minha querida. Eles hão-de perceber o valor da família.
Mas será? E se nunca perceberem? E se eu morrer sem nunca ter sentido aquele bebé nos meus braços?
As noites tornaram-se longas e cheias de insónia. Comecei a escrever num diário:
“Hoje sonhei que estava no parque com o meu neto ao colo. Ele ria-se para mim e chamava-me ‘avó’. Acordei com lágrimas nos olhos.”
A solidão foi-se entranhando nos meus ossos como humidade num velho casarão. Os dias eram todos iguais: acordar cedo, fazer café para ninguém, olhar pela janela à espera de ver o João passar com o carrinho do bebé na rua.
Um domingo à tarde ouvi vozes na rua e espreitei pela cortina: era o João com a Andreia e o bebé no carrinho. Desci as escadas a correr — talvez fosse desta! Mas quando cheguei à porta já eles tinham virado a esquina.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim: porque é que me estão a fazer isto? Não sou eu também família? Não tenho direito de amar aquele menino?
Comecei a pensar em todas as famílias desavindas que conheci ao longo da vida: irmãos que deixaram de se falar por causa de heranças; pais afastados dos filhos por mal-entendidos nunca resolvidos; avós esquecidos nos lares… Será este o destino das famílias portuguesas modernas?
Às vezes imagino-me bater-lhes à porta outra vez, implorar por uma oportunidade… Mas depois lembro-me das palavras do António: “Às vezes é preciso dar espaço.” Talvez seja isso que me resta: esperar.
Mas até quando? Até quando vou aguentar ver crescer o meu neto só através de um ecrã?
E vocês? Acham justo afastar uma avó assim? O que fariam no meu lugar?